13.12.09

Casas-abrigo para mulheres e crianças não chegam para as encomendas

Por Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Quase dez anos depois da aprovação da lei que prevê a criação de casas-abrigo, o interior continua a descoberto. E o Estado vê-se obrigado a recorrer às comunidades de inserção


A madeira range. Ana sobe a escada estreita com a filha de cinco meses ao colo. Não havia lugar na rede oficial de casas-abrigo para vítimas de violência doméstica quando fugiu do namorado que ameaçava atirar a recém-nascida ao lixo. A assistente social do hospital encaminhou-a para a Associação para a Defesa dos Direitos e dos Interesses das Mulheres (ADDIM).

O segundo andar do velho prédio não preenche os requisitos legais - a Segurança Social nunca assinou um protocolo com a ADDIM para co-financiar o abrigo. "O Estado, formalmente, não pode para ali encaminhar mulheres e crianças", há-de dizer Manuel Albano, vice-presidente da Comissão para a Cidadania e para a Igualdade de Género (CIG). Mas encaminha.

"Hoje, recebi três pedidos de integração", desabafa a directora da ADDIM, Carla Branco. A jurista pega nuns papéis: "Dois vieram de Vila Franca de Xira, outro veio de Torres Novas." Parece-lhe um indicador de necessidade - a associação está a angariar fundos para recuperar e reconverter em casa-abrigo um prédio cedido pela Santa Casa da Misericórdia do Porto.

Em 2000, ao decidir criar uma rede nacional de casas-abrigo, o país julgou que lhe bastava ter uma por distrito - eventualmente duas em Lisboa e no Porto. Quase uma década depois, conta 36. E Manuel Albano não diz que é suficiente nem que é insuficiente. Admite que o país se socorre de comunidades de inserção.

Diversificar respostas

Há a comunidade de inserção da Associação de Moradores de Lameiras, a do Centro de Apoio à Vida, a da Caritas de Coimbra, a da Casa de Sant"Ana, a do Centro Social e Paroquial de S. Lázaro, a da Comunidade Juvenil S. Francisco de Assis, a da Fundação Bissaya Barreto, a do Lar Divino Salvador, a do Lar Madre Sacramento. E, às vezes, há pensões e hospedarias a acolher quem fugiu de casa, amiúde, apenas com a roupa no corpo.

"As vagas desta rede - que, ao fim e ao cabo, é pública porque, apesar de formada por casas geridas por organizações não governamentais, é financiada pelo Estado - chegam", começa por dizer a secretária de Estado da Igualdade, Elza Pais. "Estão preenchidas 97 por cento das vagas."

"O Conselho da Europa fez um documento programático e essa deverá ser a nossa referência", lembra Maria Macedo, da Associação de Mulheres contra a Violência. Definiu, como standard mínimo, uma casa-abrigo por cada dez mil habitantes. Teresa Rosmaninho, da Soroptimist International, também recorda essa meta. Portugal, advoga, precisa também de diversificar as respostas. Fala de centros de acolhimento de emergência, casas-abrigo, casas-abrigo de alta segurança para casos mais extremos, apartamentos de transição.

Para já, o mapa mostra uma evidência. O interior está a descoberto. E isso, considera Daniel Cotrim, da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, é "uma grande falha". As vítimas têm de mudar de zona - uma de São Miguel pode ir para o Porto, uma do Porto pode ir para Bragança. "As casas não podem é ser isoladas", atalha Maria José Magalhães, da União de Mulheres Alternativa e Resposta. "As vítimas precisam de refazer a vida, eventualmente, de aumentar a escolaridade, de fazer formação." A secretária de Estado parece sintonizada com as organizações não governamentais: "As casas que vierem a ser construídas terão de o ser no interior. Neste momento, estamos a priorizar outros equipamentos, como centros de acolhimento de emergência - há já um Lisboa."

A qualidade também se questiona. "Algumas instituições não percebem o que é uma casa-abrigo - pensam que é igual a um lar de terceira idade ou a um centro de ocupação de tempos livres", diz Magalhães. Tem de haver uma equipa técnica multidisciplinar, especializada, remata Rosmaninho.