Por Clara Viana, in Jornal Público
Baixar os braços, procurar ajuda, olhar para o dia de hoje. Um Jogador Anónimo é alguém que já se assumiu. A dependência do jogo é uma doença
Eles têm uma doença, que a prazo pode vir a ter características pandémicas. Não se trata de mais uma mutação de um vírus, mas sim de uma dependência. São jogadores compulsivos.
A Organização Mundial de Saúde já reconheceu este estado como uma patologia. E os prognósticos não são os melhores, antes pelo contrário. Com as novas tecnologias, o acesso ao jogo deixou de ter entraves; por outro lado, os novos jogos online são aqueles que têm demonstrado maior capacidade de viciação. Resultado: estudos recentes têm mostrado que se está a registar um aumento exponencial dos dependentes do jogo, sobretudo entre os menores de idade, um grupo onde a taxa de dependência se está a revelar como sendo duas a quatro vezes maior do que entre os adultos.
Uma avalanche silenciosa que inquieta o grupo de Jogadores Anónimos (JA) que ontem reuniu a sua primeira convenção nacional na Parede, concelho de Cascais. Apesar de este ser um encontro de estreia, os JA já têm dez anos de história em Portugal, com três grupos de encontros semanais, dois nos arredores de Lisboa e um no Porto, e uma média de 60 a 70 presenças nessas reuniões.
Um projecto: criar núcleos para apoio das famílias. Sítios onde se possa, por exemplo, perguntar o que Isabel está agora a questionar. Vive com um jogador e quer tentar perceber se, para estes, será algo assim como uma recuperação o facto de trocarem o casino por um computador. Online pode continuar a jogar-se a dinheiro, mas mesmo se não forem estes os jogos, se não se acumularem as dívidas, será uma recuperação estar horas a fio, dia atrás de dia, "a fingir que se dá de comer à égua, ou a fabricar tijolos e aldeias"? "Até que ponto posso estar sossegada?", insiste.
Os terapeutas presentes nesta primeira convenção dos JA ainda não têm respostas seguras. É um mundo novo que está a bater à porta. Mas lembram que a dependência é "um comportamento compulsivo", ou seja, que "vai contra a vontade" do próprio. "É uma doença, não é um vício ou uma falha de carácter." Primeiro passo para trilhar o caminho da recuperação: "reconhecer a impotência". Baixar os braços, resume o médico Rui Correia.
Perder para mudar
Rui tinha 21 anos quando, pela primeira vez, entrou num casino. Foi no Algarve e sabia ao que ia. "Estava ansioso por aquela primeira vez", conta ao PÚBLICO. Começou "gradualmente": os pequenos gastos, moeda a moeda, nas slot-machines, transformaram-se em contas maiores e, por fim, deu por si a gastar o que tinha e o que não tinha. Nove anos de vida à volta das máquinas, desvios de fundos na empresa onde trabalhava, um curso interrompido, uma filha acabada de nascer, uma pausa, nova recaída e a sua mulher a colocá-lo entre a espada e a parede.
Ou pedia ajuda ou a relação acabava ali. Diz que foi ela que o levou à sua primeira reunião dos JA, uma organização de entreajuda que, à semelhança dos Alcoólicos Anónimos e dos Narcóticos Anónimos, segue o método de Minnesota, um programa iniciado nos anos 40 nos EUA. Doze passos para ensinar os doentes e as famílias a modificarem atitudes e comportamentos. Esta mudança é uma condição de base para a recuperação, recorda Rui Correia. A prática demonstrou-lhe que, geralmente, só começa a acontecer quando já existem danos e perdas.
Rui concorda. Lembra-se que só aceitou o quase ultimato da mulher não porque acreditasse à partida que o poderiam ajudar, mas sim por sentir que estava a perder a família. O certo é que não voltou a jogar, embora a sua vida, em grande parte, seja ainda hoje o que o jogo lhe deixou.
Continua a pagar dívidas. Entre o que gastou antes e o que paga agora, o que resta é muito pouco, por isso, aos 38 anos, está a viver com os pais. Acabou por se separar, tem uma filha, com quem mantém contacto, mas não tem namorada ou mulher.
"Não me queixo. Este programa fez-me ver que não preciso de muito para ser feliz." Diz que também o ajudou a lidar com a culpa. É como respirar fundo de novo: "O que está feito, está feito. Não posso fazer nada contra isso."
Luísa Martins, psicóloga, fala de uma "busca desesperada por causas". Por parte dos doentes, por parte das famílias. Considera que é um caminho que culpabiliza mais do que ajuda e defende, por isso, que em vez de se perder tempo e energia nessa demanda, se deve antes "focar na solução".
Rui já conseguiu entretanto regressar à faculdade. É uma vitória. A outra vitória, mais permanente, é a desta contabilidade diária iniciada, no Porto, há oito anos atrás. Ontem foi mais um dia sem jogar.

