18.9.10

"Ora agora, como é que eu tenho Internet para fazer a prova de recursos?"

Por Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Segurança Social notificou 885 mil beneficiários de prestações não contributivas para fazerem prova dos seus rendimentos até final de Outubro. Em Gaia, a fila começa de madrugada


A fila vai longa à porta do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Gaia. A mulher que a encabeça chegou às 6h40. Afluem pelas agruras do costume e pela necessidade de actualizarem o agregado e o rendimento para não perderem as prestações sociais não contributivas. Nem só no mais populoso concelho da área metropolitana do Porto por estes dias se amontoam pessoas sonolentas e entediadas. Até agora, 810 mil não beneficiários de Rendimento Social de Inserção (RSI) foram notificados para tratar deste assunto - 410 mil até ao final de Setembro, 400 mil até final de Outubro. Por esta altura, 75 mil beneficiários de RSI também já receberam a carta - uns têm até 15 de Outubro e outros até 31.

Até às 9h, a hora em que as portas da Segurança Social se abrem, mais de 70 pessoas acomodar-se-ão umas atrás das outras, com papéis nas mãos e perguntas na cabeça. "Às segundas-feiras é pior", anuncia a quinta da fila. "Hoje é sexta-feira, muita gente já está a pensar no fim-de-semana."

Reflexo do Programa de Estabilidade e Crescimento: as regras de acesso às prestações não contributivas - subsídio social de desemprego, rendimento social de inserção, abono de família, subsídio social de parentalidade - mudaram a 1 de Agosto. Modificaram-se os rendimentos considerados, o conceito de agregado, a definição da capitação. E por isso é preciso passar a vida de cada um a pente fino. E tudo através da Internet.

Oportunidade de negócio

Ana parece perdida a meio da fila. "Oh! Isso é tudo na Internet", avisa Júlia, a pessoa que a antecede. "Não pode ser!", reage a recém-divorciada, de repente convertida em pobre, mostrando uma carta que diz que "as provas são obrigatoriamente feitas" no site da Segurança Social e que quem já tem palavra-passe deve recorrer ao técnico que gere o seu processo de RSI em busca de esclarecimentos e de ajuda. "Fique se quiser, mas vão mandá-la embora", torna a outra, com um ar convivente. "Ainda ontem perguntei e disseram-me que não era com eles." Ana franze a testa: "Ora agora, como é que eu tenho Internet?!"

A info-exclusão multiplica impossíveis como o que a Ana enfrenta nesta manhã de 17 de Setembro. Como ela quantos?, pergunta quem a ouve engrossar a voz, indignada. Mas já há quem aqui tenha descoberto uma oportunidade de negócio. Na fila está pelo menos uma funcionária de uma empresa de contabilidade que presta este serviço por cinco euros. Em diversos bairros, florescem "voluntários" para o fazer a preços que oscilam entre os cinco e os 50 euros.

"Nos serviços de atendimento será possível utilizar quiosques com acesso à Internet e apoio de colaboradores", informa o Instituto de Segurança Social (ISS), por email. "No âmbito do protocolo com o Instituto Português de Juventude, voluntários apoiarão na realização da prova de condição de recursos."

Alguns centros de atendimento estão a marcar as provas de rendimentos de quem foi notificado para as prestar até ao final de Outubro - esta é considerada a fase mais crítica; depois de Outubro ainda virão 73.800 beneficiários de RSI e 400 mil não beneficiários. Os serviços poderão abrir ao sábado, como fizeram, por exemplo, quando arrancou o Complemento Solidário para Idosos, informa o ISS. E prevê-se que os beneficiários de RSI tenham "apoio dos [seus] técnicos de referência", através das parcerias já estabelecidas com instituições particulares de solidariedade social.

Para já, a ausência de apoio confirmar-se-á mal a porta se abra e a distribuição de senhas se inicie. "Não é connosco, tem de ir à Internet", dirá a funcionária. Ana já terá partido - há-de pedir a um sobrinho que lhe trate da papelada pela Internet, como lhe exige o Estado. Uma rapariga, de cabelos aos caracóis, garante-lhe que ele conseguirá: só terá de seguir os passos; se tiver dúvidas, que ligue para o centro de contacto "via segurança social" e que as tire.

Talvez a rapariga não tivesse tantas certezas se ouvisse a segunda pessoa da fila. Muito afiança ter ligado aquela mulher para o número 808 26 62 66 antes de se sentar aqui, a ler um livro do actor António Feio. "Antes de ser preciso fazer prova de recurso, ligava-se e não havia problema. Agora, sei lá! Ontem, liguei umas 11 vezes e anteontem oito e estive às meias horas a ouvir o que é a Segurança Social e não sei quê. Pensei que era melhor vir aqui perguntar."

Tem um assunto urgente para tratar: "Está uma coisa mal no meu agregado familiar, por isso não posso fazer a prova de recursos." O filho, que deixou a escola aos 18 anos, retomou os estudos e, com isso, recuperou o direito ao abono. A mãe entrou no site Segurança Social Directa (https://www.seg-social.pt/consultas/ssdirecta/) para actualizar os dados e percebeu que o nome dele aparece duas vezes e que em cada uma lhe é atribuído um número de beneficiário.

Risco de suspensão

A mulher, que se apresenta como "cidadã do mundo", não tem qualquer responsabilidade pelo erro aparente, só que nem por isso o prazo pára de contar. Nem o dela nem o dos outros. O de Ana acaba a 15 de Outubro - uma margem curta se o sobrinho não se revelar capaz de introduzir os dados e se ela só puder pedir ajuda à sua assistente social (a equipa de Acção Social de Vila Nova de Gaia já só está a agendar atendimentos para meados de Outubro).

Na Segurança Social vigora a ordem para suspender as prestações a quem não fizer prova de recursos dentro do tempo determinado. A CGTP já anunciou que ia recorrer ao provedor de Justiça por entender não ser aceitável haver o risco de beneficiários ficarem sem qualquer fonte de rendimento.