16.12.10

Os que a contornam e os que enriquecem à custa dela

Por Luísa Pinto, in Jornal de Jornal

Por instinto de sobrevivência, ou por farejarem oportunidades, vão surgindo empreendedores para novos negócios. Sim, é possível ganhar dinheiro a dar música às corridas dos outros. Ou a remover pastilhas elásticas dos espaços públicos. Se há quem lute contra a falta de apoios que a crise agudizou, outros há que enriquecem com ela e por causa dela.

Dizem que as crises trazem oportunidades. E esta, que se iniciou em 2008, está oficialmente instalada para ficar durante muito tempo. Avizinha-se mais austeridade, redução de salários, aumento do desemprego (e já vai em 11 por cento!). Mas mesmo neste contexto há quem tenha boas ideias e consiga crescer. E até enriquecer. É o caso de J. Chester, um minhoto nascido com nome britânico. Com 13 anos de experiência na compra e venda de ouro usado, transformou-se no rosto do primeiro franchising deste tipo de negócio - é fundador da cadeia Valores.

J. Chester diz que "foi preciso alguma imaginação e perseverança" para transformar o seu negócio em algo "franchisável". Terminou o ano de 2008 com cinco lojas, chegou ao fim de 2009 com 50, e em 2010 já lhes acrescentou mais cem.

"Já atingimos as metas que tínhamos desenhado para 2012. Temos de as rever agora", diz o administrador da cadeia, antes de pedir desculpa pelos efeitos de jet lag - acabou de chegar de Nova Iorque. Depois de Espanha e do México, onde já cravaram lanças, o alvo é os Estados Unidos? "Porque não?", limita-se a responder.

Estas casas de compra e venda de valores são hoje muito diferentes das casas de penhores e daqueles espaços que sobreviviam na semiclandestinidade, em vãos de escadas ou em lojas do 1.º andar (quanto mais afastados da vista de todos, melhor). Agora estão em espaços nobres - por exemplo, no Porto, na Rua Alexandre Braga, tendo como vizinhos o mercado do Bolhão, uma loja da Adolfo Dominguez ou o espaço-bandeira da Delta Q.

"Queremos locais com visibilidade, apesar de continuarmos a garantir privacidade às pessoas, a oferecer-lhes um espaço onde se sintam bem e confortáveis", explica Rui Pinhão, administrador da Valores.

Depois de Chester, já há, pelo menos, mais duas marcas que também aceitam franchisados (a Ourodamas e a Ourinvest), mas são muitas, muitas mais, as lojas deste tipo. Há cadeias como a Tesouros, que abre espaços até em centros comerciais, e são incontáveis as casas (da especialidade ou não) que afixam cartazes à porta a anunciar a "compra de ouro e metais de preciosos", dando a garantia de que "cobrem a melhor proposta".

Este negócio é, visivelmente, o que mais explodiu na actual conjuntura de crise. E não é difícil explicar porquê. Nos últimos dez anos a cotação do ouro tem-se valorizado a um ritmo de 20 por cento ao ano. Em 2010 já se valorizou 40 por cento.

"Nunca foi tão fácil"

A Natália Nunes, responsável da associação portuguesa para a defesa dos consumidores, Deco, que trabalha com famílias sobreendividadas, chegam cada vez mais relatos de recurso a estas casas. Não é necessariamente para fazer queixa delas - "Não temos registo de nada", adianta -, mas sim por ser uma possibilidade que está cada vez mais facilitada e que permite liquidez imediata, algo que falta, cada vez mais, a muitas famílias. "Nunca como agora foi tão fácil vender peças valiosas."

A mensagem que estas cadeias passam é a de que as pessoas podem reciclar o ouro, verem-se livres das peças de que já não gostam, dos brincos que já não têm par, para comprar outros. Mas Natália Nunes tem a percepção clara de que as pessoas não vendem para reciclar nem para reinvestir. Vendem porque têm necessidade. Quanto às lojas, compram para depois fundir e revender - para a indústria da ourivesaria, ou para venda ao público em forma de lingotes de ouro.

O negócio da Valores vai de vento em popa não só para a casa-mãe, como para os franchisados. A marca tem vindo a exigir 25 mil euros de franquia, e, segundo o plano de negócios montado, é suposto o investimento ser recuperado a partir do sexto mês e antes do fim do primeiro ano. A partir daí, já é lucro. Talvez por isso, a própria abertura de lojas destas cadeias seja também encarada como um investimento - há franchisados que já têm 15 unidades abertas. E o grupo vai chegar ao fim de 2010 com uma facturação de 60 milhões de euros. Não abundam, noutras áreas, outros exemplos de crescimento exponencial na actual conjuntura de adversidade. Mas há quem esteja a sair-se bem. As redes de imobiliárias têm aumentado o volume de negócios - apesar de se venderem menos casas, as que se vendem são, cada vez mais, mediadas por profissionais.

Também há as empresas de recuperação de crédito, que se substituem aos seus clientes para cobrar as dívidas dos credores - e são cada vez mais as pessoas sobreendividadas e que entram em incumprimento. Mas nesta área, diz António Gaspar, director-geral da APERC, a associação que representa o sector, o presumível aumento do mercado não terá correspondência na abertura de mais empresas. ? Não faz recuperação de créditos quem quer", explica. Com o quadro legal em vigor é difícil criar novas empresas e há uma série de exigências que poucos conseguem cumprir.

António Gaspar prevê, isso sim, "cada vez mais trabalho" para as empresas de recuperação de crédito que já existem, porque há cada vez mais créditos malparados para recuperar. Lembra, contudo, que haverá igualmente "cada vez mais dificuldades em atingir os objectivos" de quem contrata estes serviços, porque as famílias e as empresas não conseguem, de facto, fazer face aos compromissos.

Moda ou necessidade?

Amadeu Teixeira, sapateiro desde sempre, com uma loja na Baixa do Porto desde há cinco anos, não sente grande diferença no negócio - apesar de todos os apelos às famílias de que é preciso "poupar, poupar, poupar", não há muita gente a olhar para a sapateira a ver o que pode reaproveitar. "Isto tem mais a ver com Verão e Inverno do que com a crise ou falta dela", diz. E explica: no Verão há pouco trabalho - aparecem uns chinelinhos e sandalitas, mas pouco - e no Inverno há muito mais, porque há botas e sapatos. Mas colocar umas meias solas pode custar dez euros, e há botas nas lojas de chineses que custam cinco. Amadeu Teixeira mostra-nos umas: "A cliente nunca mais as veio buscar, porque as botas foram mais baratas do que os arranjos."

Mas também há quem acredite, como Ana Leal, cliente do "senhor que compõe guarda-chuvas" mesmo ali, à beira do Palácio da Bolsa, no Porto, que mais vale gastar um pouco mais para ter produtos com maior durabilidade. É uma forma de poupar. Ana Leal faz essas contas até com o guarda-chuva. "Os mais baratos podem custar três euros, mas destroem-se na primeira chuvada. Agora, gastei sete euros a compor as varetas de três guarda-chuvas, dos antigos. E vou ter abrigo por muito tempo."

Ana Leal garante que o "senhor que compõe guarda-chuvas tem agora muito mais trabalho". A vizinha contribui para a conversa: "Não tarda nada e vamos voltar a ter quem apanhe as malhas das meias, como antigamente."

Ana Teresa Antunes, 33 anos, diz que foi a crise que a levou à costura. Com formação em artes plásticas, e oriunda de uma família de alfaiate (o avô) e costureiras (as duas avós), acabou por encontrar uma saída para a falta de emprego quando decidiu aliar a sua criatividade ao mundo das máquinas de costura. Hoje é fundadora e uma das três costureiras que dão corpo e alma ao Atelier de Costura Criativa - Oficina da Roupa, que funciona em instalações da Junta de Freguesia de São José, em Lisboa.

Diz que é nas encomendas que recebe para trabalhos de costura que tem a sua maior fonte de rendimento, mas admite que a procura dos workshops que ministra a surpreendeu. No primeiro que lançou apareceram 80 inscritos. "Porque não havia nada deste género. E nota-se que as pessoas querem aprender, por curiosidade, mas também por necessidade." Para fazer roupa para os filhos, para reaproveitar peças de qualidade que ficaram anos nos armários, para aprender a fazer objectos que depois podem vender. "Os nossos workshops são mais uma actividade lúdica, mas ao mesmo tempo revelam-se muito úteis, porque dão às pessoas ferramentas, conhecimentos para aproveitarem no seu dia-a-dia."

É um regresso ao passado, ou é um revivalismo mais moda que necessidade? José Centeno, secretário-geral da Associação de Defesa de Direito ao Crédito, que presta apoio aos candidatos ao microcrédito, diz que em tempos de crise não há um sector-chave que garanta sucesso, mas há uma premissa que ajuda a definir prioridades: "Olhar à volta e ver, à escala da rua, qual é o negócio de que as pessoas precisam e que pode trazer um retorno rápido."

A urgência em obter retorno justifica-se pela pressa de ir amortizando o empréstimo de dez mil euros - é este o montante máximo que é oferecido ao microempresário. Parece pouco, mas faz toda a diferença para muitos.

Por isso vão aparecendo, diz José Centeno, propostas para negócios de pequena restauração ("não tanto o restaurante, que exige algum espaço, mas sim a comida para fora que implica menos investimento e logística", exemplifica), mercearias e frutarias, serviços de pequenos arranjos em casa, lojas de produtos naturais e para animais. Quer através do microcrédito (que no ano de 2010 sofreu uma quebra de 35 por cento nos pedidos mediados pela associação, "porque as pessoas estão mais receosas de que não resulte", explica Centeno), quer através do franchising, uma outra forma relativamente fácil de abrir um negócio.

Ainda não há dados para 2010, mas só para o ano de 2009 foram contabilizadas79 novas marcas de franchising. "Temos notado um grande crescimento na área de serviços, sobretudo no que chamamos franchisings low cost, os que não exigem grande investimento", diz Cristina Leandro, responsável da consultora em franchising Tormo & Associados.

O grande boom verificou-se, nos últimos dois anos, nas lojas de compra e venda de valores (isso já sabíamos), mas, garante Cristina Leandro, o segmento de estética e beleza está a ganhar muito mercado. "Há investidores que querem aproveitar a existência de muitos recursos humanos qualificados nesta área", justifica.

Essa também será a razão que explica a multiplicação de floristas - ao ritmo do crescimento do número de alunos de cursos de formação que existem nesta área nos institutos de emprego.

Limpar pastilhas

Catarina Frade, do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diz que a procura de novos negócios para aposta depende também muito das qualificações e das apetências daquele que procura emprego. Por isso aparecem serviços de consultoria nas mais variadas áreas, ou até serviços de coaching, porque estamos "sobretudo a falar da criação do auto-emprego", refere.

Foi o que fez Tiago Silva, 34 anos, engenheiro do Ambiente, hoje representante exclusivo em Portugal da marca Purigi. Quando saiu de uma grande empresa de gestão de resíduos, onde trabalhava, não se esforçou muito para procurar emprego. Esforçou-se, antes, para encontrar a melhor solução empresarial para uma necessidade que detectou e para a qual não havia soluções eficazes no mercado: a remoção das altamente poluidoras pastilhas elásticas. A GumBuster existe há dois anos e é responsável por quatro postos de trabalho. "A empresa tem mantido uma estrutura mais leve possível, queremos estar no mercado de uma forma sustentada", explica.

Com recurso a uma tecnologia que utiliza a elevada temperatura, a baixa pressão e um agente de limpeza biodegradável, Tiago Silva trouxe para o mercado um inovador serviço de limpezas industriais. E a sua empresa não só comercializa a tecnologia para outras empresas, como ela própria presta serviços aos clientes que consegue angariar. E é Tiago Silva quem faz esse serviço. José Miguel Pereira, 37 anos, licenciado em Educação Física, também desistiu de ser professor de ginástica há mais de dois anos. A falta de emprego do seu actual sócio (um profissional da comunicação e marketing) acabou por ser o detonador para a criação de um negócio que emprega actualmente os dois, e que tem grande margem de crescimento. José Miguel é fundador da YupiiRun, uma empresa que se propõe a transformar os iPod e MP3 dos seus clientes em personal trainers para programas de corrida e caminhada.

"Demorámos quase dois anos a desenvolver o projecto, fizemo-lo de uma forma profissional - com recurso às editoras e a locutores profissionais - e validada de forma científica. Hoje, qualquer pessoa pode adquirir esses programas online. Agora, o nosso objectivo é vender esses programas no retalho tradicional", explica.

Bruto da Costa, autor de diversos estudos sobre pobreza e políticas sociais, pressente que há no terreno muitas empresas da chamada "economia alternativa", nomeadamente projectos que resultam do acesso ao microcrédito, mas nota que há falta de estudos que permitam quantificar o volume de negócios destes projectos. Resultado: acabam por ter ainda pouca visibilidade. Certo é que eles estão aí. A crise trouxe necessidades e oportunidades - e há quem esteja a aproveitá-la.