Por Gabriela Costa, in VER
Há “um novo entendimento” sobre o papel que o tecido económico tem a desempenhar sobre as questões da pobreza. Numa entrevista de balanço, Edmundo Martinho, coordenador nacional do Ano Europeu de Combate à Pobreza e Exclusão Social, garante que a mobilização das empresas foi “exemplar” e, sobretudo, “esperançosa”. Agora é preciso “que esse contributo continue a afirmar-se naquilo que são as práticas empresariais”
O encerramento nacional do Ano Europeu de Combate à Pobreza e Exclusão Social reuniu na passada Sexta-feira, em Lisboa, várias personalidades políticas (incluindo a coordenadora Europeia e o coordenador nacional do AECPES, a ministra do Trabalho e da Solidariedade Social e o Comissário Europeu do Emprego, Assuntos Sociais e Inclusão). Durante a cerimónia foram entregues os prémios de jornalismo criados no âmbito do AECPES e esteve patente uma exposição dedicada aos mais de cinquenta projectos nacionais desenvolvidos sobre esta temática.
O objectivo foi, segundo Edmundo Martinho, “prestar contas e fazer o balanço deste Ano Europeu”, retirando-se daí “o que se apresenta a nível de desafios para o futuro do País”. Dez meses depois da Grande Entrevista que deu ao VER, a propósito das expectativas nacionais para este AECPES, o seu coordenador nacional sublinha a importância que a iniciativa assumiu, já que “nos confrontou com as nossas fragilidades e nos obrigou - tem de continuar a obrigar-nos - à reflexão sobre para onde é que estamos a caminhar e o que podemos corrigir para fazer melhor”.
Que balanço faz do Ano Europeu de Combate à Pobreza e Exclusão Social (AECPES)? Julga que representou uma oportunidade para as organizações melhorarem as suas práticas ou a sua participação circunscreveu-se ao âmbito das iniciativas do próprio Ano?
Faço um balanço muito positivo do AECPES que, em termos pessoais, foi de uma enorme riqueza porque, de facto, hoje as empresas estão mais conscientes. Foram organizadas muitas acções ao longo do ano e a nível local houve imenso empenhamento. Conseguimos atingir a mobilização em torno de um objectivo: assumirmos que as questões da pobreza dizem respeito a todos nós, e não apenas ao Estado ou às organizações não governamentais. Dizem respeito às empresas, inclusivamente, e a sua resposta foi muito positiva, mesmo por parte de actores que não vemos habitualmente associados a estas questões. Esse fenómeno é notável e, sobretudo, bastante esperançoso. E é algo que me deixou muito satisfeito, à medida que fui assumindo a função de coordenar iniciativas deste Ano Europeu.
O AECPES desempenhou um papel relevante ao nível das políticas públicas nacionais, mas teve também um impacto fundamental na mobilização a nível local. Trata-se de um grande papel que tem de ser desempenhado pelas pequenas organizações e houve, de facto, empresas muito empenhadas nas iniciativas que promoveram, dentro das suas capacidades. Julgo que um dos aspectos mais salientes deste Ano é que nos deixa mais motivos para acreditarmos que é possível, todos em conjunto, dar a volta à actual situação e conseguir uma melhoria significativa das condições de vida dos portugueses que vivem pior. Não tenho nenhuma dúvida sobre isso e devo sublinhar o enorme contributo que as empresas deram ao AECPES.
É preciso agora que esse contributo continue a afirmar-se naquilo que são as práticas empresariais a todo o momento, e que não esteja apenas associado às iniciativas deste Ano Europeu. O que é importante é que estas preocupações não se percam a partir de Janeiro, mas eu estou convencido de que haverá uma continuidade nos esforços iniciados e acredito francamente que a forma como esse empenho foi visível vai significar uma outra forma de entender e de olhar para a realidade da pobreza em Portugal, por parte do meio empresarial. Este ano deixou bem claro, por parte das muitas empresas que participaram, que a Responsabilidade Social é um exercício diário, permanente e não apenas um exercício episódico a propósito de uma ou outra iniciativa. Há um novo entendimento sobre as questões da pobreza e do papel que o tecido empresarial, económico, tem a desempenhar nesse domínio.
Como é que compara a celebração do AECPES em Portugal com a dos outros países europeus, atendendo às experiências que conheceu através dos restantes coordenadores nacionais?
Temos encontros regulares e devo dizer que – embora me fique mal, mas pergunta-me e eu tenho de responder –, acho que Portugal deu um grande exemplo de mobilização colectiva. Quer por parte das empresas, insisto, quer por parte das ONG e do conjunto de entidades que têm responsabilidades nas áreas da pobreza e da exclusão social. Foram realizadas iniciativas muito esforçadas e, desse ponto de vista, tivemos das melhores performances a nível europeu. Conseguimos, de facto, uma mobilização exemplar que só foi possível graças à grande resposta das entidades ao apelo deste Ano. Nesse sentido, tivemos parceiros essenciais, que não se pouparam a esforços.
Fala das grandes empresas, que habitualmente se associam a estas iniciativas, ou também das PME locais?
Não me refiro só às grandes empresas. É óbvio que, a nível nacional, recebemos o apoio de grandes organizações como o Montepio, que foi um parceiro de tempo inteiro, o grupo Auchan, e, por exemplo, a Ogilvy, na área da publicidade. Mas também recebemos sempre o apoio de entidades a nível local. Isto é algo que devemos sublinhar, pois temos sempre a tendência para diminuir a nossa capacidade de nos mobilizarmos.
“Foram realizadas iniciativas muito esforçadas e, desse ponto de vista, tivemos das melhores performances a nível europeu”
Quais foram os objectivos da Conferência Internacional sobre Pobreza e Exclusão Social que antecedeu o encerramento do AECPES?
Em Novembro decorreu uma grande conferência internacional, que visou defender o combate à pobreza enquanto “compromisso para o futuro global”. Em debate estiveram temas que reflectem a actual conjuntura, como as políticas públicas e o Rendimento Social de Inserção. Durante três dias tivemos apresentações científicas de grande valor, e isso permite traçar melhor o longo caminho que há a percorrer sobre a compreensão dos fenómenos da pobreza e a sua evidência. Ao mesmo tempo que é feito um trabalho nacional para as contas públicas, precisamos perceber como é que se conseguem dar apoios a quem precisa. Isso implica dar um grande impulso às nossas metodologias de trabalho.
Qual é, para si, a importância de se assinalar o AECPES na actual conjuntura de agravamento das situações de pobreza e de pedido de ajuda a organizações como a Cáritas e o Banco Alimentar Contra a Fome, associado ao crescimento galopante do desemprego?
Quando a Comissão Europeia decidiu dedicar este Ano às questões da pobreza, durante a Presidência portuguesa, em 2008, não se tinha ainda a consciência plena do impacto que a extensão dos problemas iria ter sobre a vida das famílias. Estávamos longe de perceber como esses problemas nos afectariam a todos, em termos europeus. Até por isso, este é um Ano que nos tem obrigado a uma grande reflexão.
Pode-se dizer que o AECPES nos ajudou a perceber o que estamos a fazer bem e o que podemos fazer melhor. O objectivo tem de ser esse: face às situações que vamos vivendo, conseguirmos aproveitar os mecanismos que nos são colocados à disposição, por escassos que eles sejam. Também desse ponto de vista, o AECPES foi um Ano importantíssimo que nos confrontou com as nossas fragilidades e nos obrigou - tem de continuar a obrigar-nos - a esta reflexão sobre para onde é que estamos a caminhar e o que podemos corrigir para fazer melhor.
Em tempos de crise, quais são, para si, as grandes prioridades sociais?
A prioridade tem de ser assegurar que ninguém que precise dos apoios que a sociedade pode dar fique de fora, sejam estes quais forem. Essa tem de ser a prioridade também da Segurança Social: temos de ter condições para não permitir que quem precisa de apoio deixa de o ter.
Nesse contexto, e como presidente do Instituto de Segurança Social, como vê as medidas sociais contidas no plano de austeridade em curso, como o aumento do IVA?
Estas medidas vão traduzir-se numa diminuição no rendimento médio das famílias e, como disse, isso exige-nos uma atenção particular às situações de maior fragilidade. O confronto com essa exigência de fazermos melhor do que temos feito, utilizando os recursos disponíveis é, de facto, um grande benefício que sai deste Ano Europeu.
Portugal é 9º país mais pobre da UE
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Portugal é o nono país mais pobre da União Europeia. O norte do país está entre as trinta mais pobres das 254 regiões da Europa, revelam dados do Eurostat. A situação agrava-se quando falamos de pobreza infantil: segundo o mais recente relatório do Centro de Estudos Innocenti, da UNICEF, somos o país da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) com uma taxa mais elevada a este nível. Entre 24 países, as crianças portuguesas ocupam a 16º posição em termos de bem-estar material, abaixo da média da OCDE. Os dois milhões de portugueses a viver no limiar da pobreza em 2009 aumentaram, em Julho deste ano, para 2,5 milhões, conclui, por sua vez, o Instituto Nacional de Estatística. Só na região norte, onde esta realidade se agrava diariamente devido ao encerramento de muitas fábricas e empresas, concentram-se hoje 1,25 milhões de pobres. Ainda que a taxa de risco de pobreza monetária tenha caído de cerca de 20 para quase 18%, entre 2003 e 2008, e que se registem alguns indicadores positivos – como a diminuição em 9% do risco de pobreza entre a população idosa –, os dados do INE, quando comparados com os do conjunto dos países da UE, indicam que a distribuição do rendimento monetário disponível médio no nosso país apresenta uma das mais elevadas assimetrias.
O extremar da pobreza em Portugal torna-se evidente num estudo realizado pelo Banco Alimentar Contra a Fome (BA) e pela Entrajuda, através da Universidade Católica Portuguesa, que envolveu 3279 instituições de solidariedade social e quinze mil pessoas carenciadas. Os dados apresentados no final de Novembro revelam que há hoje cinco mil famílias em lista de espera para receber apoios sociais. Um quinto das instituições de solidariedade social do país não têm recursos para responder a todos os pedidos e 76% garantem que estes não param de aumentar. Braga, o Grande Porto e Setúbal são os distritos mais afectados, corrobora o estudo, que adianta ainda que a maior procura incide nas zonas onde há mais desemprego. Incontornável é que a incapacidade de resposta se estende de norte a sul do país, tornando ainda mais incerta a vida das pessoas que vivem numa situação vulnerável: idosos, na sua maioria; adultos sem rendimentos do trabalho (apenas 19% tem um trabalho remunerado); “novos pobres” (41% do total de portugueses carenciados nunca foi pobre).
Segundo a Cáritas portuguesa, o número de pessoas atendidas cresceu quase 30%, em resultado do agravamento da crise e das situações de pobreza. A procura de ajuda à organização alastra-se já a 62 mil pessoas. A prioridade é garantir resposta às necessidades alimentares, de habitação, de apoio escolar e de acesso a medicamentos, diz o presidente da Cáritas portuguesa, mas “as instituições da Cáritas estão a ficar sem recursos financeiros para fazer face aos pedidos”, avisa. Perante a gravidade da situação, a generosidade e solidariedade dos portugueses é mais importante do que nunca, e parece ser proporcional aos factos: na ultima recolha de alimentos do BA, realizada no último fim-de-semana do mês passado, foram reunidas 3.250 toneladas de géneros alimentares, o que representa um acréscimo de 30%, face à campanha de Dezembro de 2009. Trata-se de “um recorde absoluto”, que resulta de uma participação extraordinária de cerca de trinta mil voluntários.
Em toda a UE existem hoje 84 milhões de pessoas ameaçadas pela pobreza, avisa a Comissão Europeia, que tem apelado à implementação de medidas concretas por parte dos Estados-membros.

