14.1.11

Orquestras de pessoas sem abrigo

Por Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Conhecem a rua melhor do que ninguém e fazem música

Jorge Prendas sonhou com uma orquestra de pessoas sem abrigo. E nasceu o Som da Rua, um projecto do Serviço Educativo da Casa da Música. Hoje, há espectáculo na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
O ensaio é o ponto alto da semana (Foto: Nelson Garrido)

Que bem que lhe vai saber regressar a Lisboa. "É a cidade mais bonita do mundo. Sou lisboeta e bairrista." Saiu de lá há mais de um ano. Esta quinta-feira, regressa com uma missão: encerrar, lá para as 17h15, o seminário Limites na Intervenção com Pessoas Sem Abrigo. Nunca pensou tocar na Fundação Calouste Gulbenkian. "É uma sala XPTO."

Jorge Augusto dormia no albergue da Assistência Médica Internacional (AMI), na mais periférica freguesia do Porto, quando ouviu falar no Som da Rua - "a orquestra de quem, melhor do que ninguém, conhece a rua" -, um projecto do Serviço Educativo da Casa da Música. Foi espreitar os ensaios. "Meu Deus! Não sabiam termos técnicos, mas faziam tudo com tanta alegria!"

Naquela roda, apenas técnicos e sem-abrigo. Que não haja equívocos:sem-abrigo não é apenas quem dorme na entrada de um prédio, numa estação de metro ou comboio, dentro de um carro ou de um contentor; é também quem recorre a albergues nocturnos ou a espaços cedidos por familiares ou pagos pela Segurança Social; é todo aquele que carece de habitação digna e estável.

Impossível não se identificar com quem ali fazia música com garrafas-chuva ou tampas-serpentina - instrumentos criados a partir de garrafas ou tampas de plástico. Havia, porém, algo que o incomodava: "E depois? E se alguma pessoa me reconhecia?" Não gostava que o vissem como sem-abrigo. Quem gostaria? Ultrapassou isso: "O que é que podem dizer? Estou a lutar por uma vida melhor e a usar a música para me divertir."

O ensaio é o ponto alto de uma semana muito pautada pelas idas às instituições que o assistem. Quartas-feiras, aparece antes das 14h00 à porta do número 139 da Rua dos Mercadores, uma artéria estreita, empedrada e inclinada da Ribeira do Porto. "Consigo encontrar paz, amizade, alegria. Sinto-me tão bem comigo mesmo ao fazer isto."

A orquestra apareceu na cabeça de Jorge Prendas - que escreve para várias formações e faz parte do quinteto a cappella Vozes da Rádio. Em Julho de 2009, apresentou-a ao coordenador do Serviço Educativo, cargo que agora ocupa. Findo o Verão, estava "a partir pedra". Urgia identificar parceiros, conquistá-los. Em meados de Outubro, arrancavam os ensaios.

Primeiro, ensaiavam no Serviço de Assistência das Organizações de Maria. O grupo cresceu, cresceu, cresceu e deixou de lá caber. Agora, que já integra umas cinco dezenas de pessoas, ensaia nas antigas instalações da Fundação para o Desenvolvimento do Centro Histórico do Porto.

Não houve processo de selecção. Seleccionar era negar o ideal de incluir todos os que o desejem. E Jorge Prendas pensou neste projecto como "um oásis" - "um modo de as pessoas se sentirem bem com elas próprias, interagirem, ouvirem música, fazerem música". Acredita que actuar "pode colocar sobre elas uma luz que elas nunca tiveram na vida".

Começou com um prato

Jorge Augusto tem 40 anos e nunca se atrevera a sonhar com algo como o Sonópolis 2010, espectáculo feito com vários projectos educativos da Casa da Música. "Mais de mil pessoas na Casa da Música! Senti que fazia parte de uma coisa tão bonita. Senti-me tão cheio. Melhor do que se tivesse visto a minha banda favorita - os The Cult."

Não se pense que é fácil - Jorge Prendas já sofreu até ameaças à integridade física. Aqui juntam-se vidas enleadas. Como a do trompetista romeno, que andava a tocar na rua e deixou de aparecer para ter mais tempo para trabalhar. Ou a idosa portuguesa que os pais não cuidaram, que o marido tanto maltratou e que ali se eleva para cantar Povo que lavas no rio. Maior estrela que ela só o homem de gorro que interpreta O menino vadio - uma canção que é quase um choro aprendido ao crescer na Casa do Gaiato. Tudo o resto é original.

Para Jorge Augusto, "tudo começou com um prato". Agora, tem uma bateria. "O Paulo arranjou um timbale para fazer o bombo. Aquilo é um monumento. Quando ele me disse que aquilo era para o Som da Rua, eu parecia aqueles miúdos que recebem o presente que mais desejam na vida."O Paulo de que fala é um músico profissional. O percussionista Paulo Coelho e o guitarrista Gil Teixeira assistem o coordenador do centro educativo no trabalho com este grupo. E do grupo saem coisas como esta: "Corpo cansado/de rosto no chão/choro de tristeza e emoção/Da minha vida/faço esta canção/Caminharei contra a solidão." Ou esta: "Desejo de viver/comunhão/fantástico/presente/ Estamos aqui para cantar/Felizes por estar aqui/viver/A amizade é a união/que nos aquece o coração/Sonhar."

Já houve concerto em muitos lugares. Hoje, é a doer: auditório 2 da Gulbenkian, encerramento de um seminário com peritos internacionais, promovido pelo Alto Comissariado da Saúde, a Coordenação Nacional para a Saúde Mental e a AMI.

A ansiedade arruinou o derradeiro ensaio ao homem baixo e corpulento que marca o tempo. Anteontem, o baterista só adormeceu por volta das três da manhã. Ontem, estavam todos sentados em cadeiras de madeira encostadas à parede, um sugeriu-lhe que baixasse o tom e ele irritou-se, abandonou a sala, ameaçou não voltar.

Nenhum familiar na plateia

Não é a primeira vez que os nervos o traem. Antes de um concerto na Universidade Católica, levantou-se a meio de um ensaio por ser incapaz de lidar com as constantes correcções de Paulo Coelho. No dia, lá estava ele. E hoje quem o compreende sabe que estará no lugar marcado a tempo de apanhar a camioneta para a capital.

Está inseguro. Percorreu um caminho tortuoso antes de chegar aqui. Não terminou o 9.º ano. Andava muito à volta dos Ferro & Fogo, uma banda de covers de hard rock e heavy metal. As faltas conduziram-no à suspensão e a suspensão conduziu-o ao abandono escolar. Tinha 15 anos. Era 1985. A heroína conquistava adeptos por todo o lado. Jorge Augusto deixou-se seduzir, enterrou-se nela.

Foi trabalhando, apesar da dependência. Trabalhou anos para uma empresa de produção de espectáculos que alugava material a bandas. Lidou com muitos músicos de reconhecido mérito - "dos Metallica aos Deolinda". Andou por Moçambique, por Espanha, regressou a Portugal.

No Natal de 2009, um amigo convidou-o para passar a consoada no Porto. Porque não? Em Lisboa tinha apenas a prima, quase irmã, já cansada dele. Ele próprio já estava cansado. Talvez por isso tenha dado ouvidos ao amigo que lhe recomendou o programa de substituição opiácea. Uma zanga amorosa atirou-os para a rua. Um poeta amigo de ambos acolheu-os numa casa abarracada - sem água, sem luz, sem gás. De repente, Jorge Augusto tinha uma assistente social e estava a frequentar instituições particulares de solidariedade social.

Viveu meio ano no albergue - as regras pareciam-lhe excessivas. Regressou a uma das casas abarracadas do poeta - com água, com luz, com gás. Paga 20 euros de renda. "Um valor simbólico." Como pagar mais? Aguenta-se com 189 euros de rendimento social de inserção.

Sente-se a andar: "Estou a viver na minha casa. E estou há um ano e um mês sem consumir heroína e cocaína. Tomo 40 miligramas de metadona. Como na AMI. De dois em dois meses, dão-me um cabaz com mercearia. Faço umas sopas. E estou a acabar o 9.º ano no Novas Oportunidades."

Os planos fervilham na sua cabeça. Inscreveu-se "num curso de formação na área de produção e multimédia". Quer ter o 12.º ano. "As pessoas dizem-me: "Agora, com 40 anos!" Mas é com 40 anos que tenho vida, porque já não tenho um problema que me prenda, uma dependência." Escolherá o horário da manhã para não falhar os ensaios do Som da Rua.

Quererá algum parceiro continuar este projecto? Os membros da Liga para a Inclusão Social estão "eles próprios a viver uma situação de pobreza", nota Jorge Prendas. A Casa da Música não quer deixar cairo Som da Rua. Manteve-o mais um ano, a ver se encontra quem lhe dê continuidade. Jorge Augusto está a contar com isso como de pão para a boca: "Se Deus quiser, alguém terá compaixão de nós. Gostava de ir mostrar o que a gente faz ao país todo. Não é para terem pena, é pela qualidade. Isto tem qualidade. Fazemos bem, fazemos com prazer."Ao final do dia de ontem, já só queria pedir desculpa por se ter irritado. Nunca teve um familiar na plateia. Espera que a prima, a quase irmã, o vá ver hoje. E que leve as duas crianças dela. "Vamos tocar o nosso reportório. Músicas da nossa autoria." Armindo cantará a sua canção e Ana Rosa o seu fado. Ninguém falará das agruras da vida. Apenas "do estado da arte". A deles.