10.4.12

Vergonha de Desempregado

Por:Victor Bandarra, in Correio da Manhã

É um homem atento de olhar inquieto, bem escanhoado, casaco a preceito, gravata escura, saquito de lona à tiracolo.

Deambula pelas Amoreiras, em Lisboa, em passo lento e cadenciado. Por vezes, senta-se num banco de jardim e desdobra um jornal gratuito. Puxa dos óculos e lê com aparente atenção. Outras vezes, destampa uma ‘mini' e desembrulha uma sandes. Chega por volta das 8 e meia da manhã e desaparece pela tardinha. Não fosse a assiduidade, passaria despercebido. Mas o homem, cinquentão, engravatado, passeia-se por ali há vários dias - sempre calado, rua acima, rua abaixo. Dá nas vistas.

O arrumador de serviço na zona desvendou parte do mistério - "conheço o gajo de ginjeira!" Carlinhos, o arrumador, não é rapaz de drogas, diz ele. Sozinho no mundo, sonha emigrar para o Canadá. Trabalhou num supermercado da zona de Loures mas foi despedido. Há meses que caça cêntimos de fregueses certos em ruas certas. Também folheia jornais gratuitos, enquanto barafusta contra governo, políticos e emigrantes africanos. Gosta de estatísticas e citou--me um número: "Já chegamos aos 811 mil! 811 mil desempregados!" Pior é a percentagem do desemprego jovem. "35 e meio por cento, sabe!?", grita Carlinhos. "Está aqui no jornal. No Canadá não há desemprego!" O meu amigo Zé dos Pneus vinga-se com os números espanhóis. "Em desemprego, os hermanos estão piores do que nós..." É verdade. Mas a troika não entrou em Espanha e os subsídios são outros.
Desemprego e falta de trabalho ameaçam esfrangalhar a juventude portuguesa. Desemprego significa miséria económica; falta de trabalho significa miséria social e humana. E uma coisa pode levar à outra. Carlinhos tem 30 anos, safa-se como arrumador, até pode cumprir o seu sonho: trabalhar num super-mercado canadiano. Por enquanto, olha para o homem engravatado e lança um sorrizinho vingativo. "Tem mulher e duas filhas, uma estuda na universidade". Como é que sabes? "Era o meu chefe no super. Foi despedido em Janeiro!" Carlinhos abana o jornal, corrige a trajectória do carro e arrecada mais uma moeda. "É meu vizinho em Loures. Ainda não teve coragem de dizer à família que foi despedido". Entendi: o homem sai todas as manhã de casa, finge que vai trabalhar e volta à noitinha. Por vergonha, calcorreia ruas desconhecidas e treina coragem para arrumar carros. "Aqui não se safa... enquanto eu cá estiver". Carlinhos pode emigrar, ao homem resta-lhe arrumar carros. Mas só se perder a vergonha.