Ricardo Garcia, in Público on-line
Seria um estranho apelo, se não fosse uma metáfora. “Mandem para os nossos países as vossas poluições”, disse, à mesa das negociações, o representante de um país menos desenvolvido. O ano era o de 1972, quando se dividiam as nações do planeta em Primeiro, Segundo e Terceiro Mundo.
Aquela frase – recordada ao PÚBLICO pelo oceanógrafo Mário Ruivo, que participou, naquele ano, na Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, em Estocolmo – cristalizava uma divisão clássica entre nações do Norte e do Sul, entre os que já sentiam a necessidade de travar os problemas ambientais, e os que precisavam a todo o custo de crescimento económico para pôr fim à pobreza.
Atenuado pelo tempo, o mesmo tipo de fosso está presente agora na Rio+20 – a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, que dá hoje o seu pontapé de partida. Mais de 50 mil pessoas são esperadas no Rio de Janeiro. Delegações de 176 país retornam às negociações, primeiro numa sessão preliminar entre hoje e sexta-feira, e depois na conferência propriamente dita, de 20 a 22. Dezenas de eventos paralelos vão mobilizar empresas, organizações governamentais, autarquias, cidadãos (ver infografia).
A Rio+20 é uma espécie de plataforma de relançamento do desenvolvimento sustentável, duas décadas depois de a Eco-92 – também no Rio de Janeiro – ter dado passos concretos nessa área. Sobre a mesa estão temas que são tudo menos consensuais: a “economia verde” como caminho para a erradicação da pobreza; a adopção de metas para o desenvolvimento sustentável; a criação, na ONU, de novas estruturas mais fortes para o ambiente e a sustentabilidade (ver caixas). O documento que pode vir a ser aprovado ainda é uma manta de retalhos com 329 parágrafos, dos quais apenas 70 estão acordados.
A aposta central na economia verde não agrada aos países em desenvolvimento. “Há o receio de que a economia verde seja uma pauta aduaneira para classificar os produtos em termos de pegada ecológica, e que isso seja uma forma encapotada de obstaculizar o livre comércio”, afirma o secretário de Estado do Ambiente, Pedro Afonso de Paulo. “Quando visitamos locais onde as pessoas nem sequer têm acesso a água potável, é difícil discutir numa base racional que queremos pegada ecológica para os produtos.”
Dinheiro e tecnologia
Para aceitar a ideia da economia verde, os países mais pobres querem auxílio financeiro e transferência de tecnologia. “A UE tem sinalizado de que não pode ser só de dinheiro que estamos a falar”, avisa Pedro Afonso de Paulo. “Os países desenvolvidos também enfrentam uma crise significativa e os riscos [ambientais] que corremos todos já não são de longo prazo, são para um horizonte de dez a 20 anos.”
Num relatório recente, a ONU regista, nas últimas duas décadas, alguns avanços, mas muitos sinais de alerta. Há mais 1,4 mil milhões de pessoas no mundo, a biodiversidade encolheu 12%, 300 milhões de hectares de floresta primária desapareceram, a temperatura da Terra subiu 0,4 graus, há mais gente a viver em bairros de barracas.
“Todos temos a consciência de que estamos a discutir o futuro da humanidade”, afirma Mário Ruivo, que hoje preside à Comissão Nacional para o Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CNADS). Mas a resposta global tem sido lenta. Vinte anos depois de Estocolmo, a Eco-92 representou, segundo o oceanógrafo, “um salto importante”, com a aprovação de três convenções internacionais, mais um amplo roteiro para a sustentabilidade.
Passados dez anos, o mundo voltou a reunir-se na Rio+10, em Joanesburgo. “Foi uma tentativa de soprar nas brasas. Mas as cinzas eram de tal ordem, que as chamas não despegaram”, avalia Mário Ruivo. E agora, na Rio+20, “as pessoas estão a soprar para o outro lado”.
O presidente do CNADS vê ainda outro problema: “Toda a gente jura que está a fazer o desenvolvimento sustentável. Estamos a assistir agora a uma banalização que destrói o conceito.” Ainda assim, a Rio+20 poderá trazer efeitos positivos, se conseguir estabelecer eficazmente o “triálogo”, entre governos, empresas e cidadãos.
João José Fernandes, da associação humanitária Oikos, vê também como potencial benefício o facto de haver uma forte componente social na agenda da Rio+20: “O aspecto mais positivo é a tentativa de conciliar justiça social com o ambiente e a economia.”
O que tem vingado é a ideia de que a Rio+20 – uma conferência que foi o Brasil a colocar na agenda da ONU, e não o contrário – não será um momento de grandes decisões. “Parece que não é um ponto de chegada, mas um ponto de partida”, diz João José Fernandes. “A questão é saber se não é uma falsa partida”, alerta Francisco Ferreira, da associação ambientalista Quercus. “Faltam objectivos ambiciosos e os conflitos parecem ser os mesmos de sempre, entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento.”
A crise económica não ajuda. Na sexta-feira passada, o novo Presidente francês, François Hollande reconheceu que há “o risco de fracasso, porque pode haver outras urgências”. Hollande é um dos 102 chefes de Estado ou de governo que já garantiram presença no Rio, incluindo Pedro Passos Coelho. Outros líderes, como Barack Obama, Angela Merkel e David Cameron, não irão. Muitos países serão representados pelos seus ministros do Ambiente.
“Portugal fez bem em fazer-se representar pelo primeiro-ministro. Será um erro ver esta conferência apenas como uma conferência ambiental”, afirma o secretário de Estado do Ambiente. Portugal tem ainda um pavilhão na Rio+20, com empresas e centros de investigação.
Algumas organizações não-governamentais nacionais – como a Quercus e a Oikos – juntam-se a centenas de outras que participarão da Cúpula dos Povos, um mega-encontro da sociedade civil, no Parque do Flamengo.
Num momento em tudo parece apagado perante a crise económica, mobilizar a sociedade civil e manter a ideia do desenvolvimento sustentável à tona pode ser um dos principais trunfos da Rio+20. “O importante nessa altura é aproveitar as dialécticas para ver se, com a ajuda dos meios de comunicação, flutuam jangadas com algumas mensagens”, diz Mário Ruivo.