Por Marta F. Reis, in iOnline
Novos estatutos que aguardam aprovação vão centralizar queixas na Entidade Reguladora da Saúde
São garantias dispersas num labirinto de diplomas, mas conhecê-las ajuda a perceber se está ou não com a razão e até pode valer coimas aos serviços. Em vésperas de a Entidade Reguladora da Saúde passar a gerir todas as reclamações relacionadas com prestadores de saúde - até aqui actuava sobretudo no sector privado e monitorizava o público -, há duas iniciativas destinadas a reforçar a informação. Na semana passada, o parlamento enviou para promulgação um decreto que consolida direitos e deveres até aqui perdidos em vários diplomas. Já da Universidade Católica de Lisboa chega um livro que reúne pela primeira vez todas as disposições da lei portuguesa sobre saúde, do que diz a Constituição aos tempos máximos de resposta. Um exemplar, contaram ao i os autores Maria João Estorninho e Tiago Macieirinha, chegará ao Ministério da Saúde, já que acreditam que não só os utentes mas também decisores e gestores por vezes não conhecem a "avalanche normativa" que os precedeu. Segundo apurou o i, um dos objectivos da ERS com os novos estatutos que aguardam publicação é não só analisar individualmente as queixas mas exercer maior fiscalização sobre as unidades com maior número de reclamações. O utente poderá nem sempre ter resposta na hora, mas fazer valer os seus direitos pode por isso contribuir para serviços mais eficientes. Essa é também a convicção dos professores da Católica. O i leu os diplomas e, nas dúvidas que ficaram, contactou quem está no terreno e outros especialistas da área do direito da saúde como o jurista André Dias Pereira, jurista da Universidade de Coimbra. Deixamos-lhe um guia prático que não previne nem cura chatices, mas pode ajudar a aliviá-las.
Guia para fazer valer os seus direitos no SNS
Posso escolher o centro de saúde onde me quero inscrever? Podem inscrever-se no centro de saúde para ter um médico de família atribuído todos os cidadãos mas a lei confere prioridade aos que residem na zona. Pode inscrever-se num centro de saúde perto do trabalho ou numa localidade diferente da morada fiscal. Como há falta de médicos, o mais provável é ficar na lista de utentes sem médico e quando faz uma marcação estar dependente das vagas de recurso. Se tiver médico atribuído e não for ao centro de saúde durante três anos os serviços têm de tentar contactá-lo pelo menos uma vez antes de o passar para a lista de adormecidos para dar a sua vaga a outro utente sem médico.
Qual é o tempo máximo de espera para uma consulta no centro de saúde? Tenha ou não médico, em situação de doença aguda em que se desloque ao centro de saúde tem de ser atendido no próprio dia. Em caso de rotina, tem de ter consulta no máximo 15 dias após o pedido. A renovação de medicação crónica terá de ser entregue até 72 horas após o pedido assim como relatórios e outros documentos escritos que peça. Se estes prazos não forem cumpridos, pode fazer queixa quer no livro de reclamações no local quer directamente para a Entidade Reguladora da Saúde.
Tenho direito a escolher um médico especialista no SNS? No SNS existe o princípio da liberdade de escolha mas subordinada aos “recursos existentes”, o que significa que tem de seguir as regras da organização. Para ter acesso a um médico especialista nos hospitais públicos tem de ser referenciado pelo médico de família ou outro e já não são aceites cartas: o médico tem de fazer o pedido num sistema informático. Por regra, a referenciação é em primeiro lugar para o hospital da zona de referência ou para o mais próximo com a especialidade necessária ou para o mais indicado em função do problema. Desde o início do ano que se for um médico particular a referenciar também tem de seguir estas regras. Está a ser testada uma forma de os médicos de família saberem de antemão os tempos de espera nos hospitais mais próximos para que os utentes possam escolher para onde querem ir mas ainda não está aplicado.
Se for directamente ao hospital fora da minha zona sem ser numa urgência a marcação pode ser negada? Só nessas situações e mesmo assim poderá apresentar um requerimento, que será apreciado pelo hospital. Todas as situações devidamente referenciadas têm de ser aceites.
Depois de o médico referenciar qual é o tempo máximo para ter consulta? É o hospital que agenda a consulta e define um nível de prioridade para o doente em função da situação clínica descrita pelo médico que referenciou. É esse nível de prioridade que dita o tempo máximo de resposta: as consultas muito prioritárias têm de acontecer num mês, as médias em dois e as normais no máximo em cinco meses. Em caso de consulta oncológica o tempo máximo de espera é 30 dias. A triagem deve acontecer no prazo de cinco dias e o doente é informado por carta do nível de prioridade e prazo de consulta. Se vir que está a passar o tempo contacte os serviços para saber o seu nível de prioridade. Pode reclamar.
E se me disserem que vou ter esperar mais tempo? Desde 2013 que a constatação de espera superiores aos previstos na lei permite ao médico referenciar o utente para outro hospital público onde a resposta seja mais rápida, desde que o doente queira. Tem sido pouco aplicado até porque no limite os doentes podem só ser informados da data de consulta com antecedência de cinco dias úteis. Mas se vir que os prazos estão a ser ultrapassados pode pedir para ser referenciada para outra unidade.
Quero pedir uma segunda opinião. Posso pedir o meu ficheiro clínico para levar a outro médico? Embora não exista lei específica sobre essa matéria, algo que o jurista André Dias Pereira considera que seria desejável, a resposta é sim. “Pode consultar o processo e ter cópia dele”, garante. Em caso de resistência, pode fazer queixa no serviço ou à CADA invocando o artigo 7º da Lei nº 46/2007. O decreto que aguarda promulgação refere ainda o artigo 11ª da lei no 67/1998 e reconhece o utente como titular do direito de acesso aos dados pessoas recolhidos. Isto vale no público e no privado.
Posso ir a outro médico do SNS para ter uma segunda opinião? Por regra, só no Instituto Português de Oncologia são aceites esses pedidos de consulta. Pode sempre pedir ao médico de família ou no médico hospitalar a referenciação, já que os médicos podem sempre fundamentar pedidos a outras unidades. Estes contudo podem ser negados.
E se não estiver satisfeito com o médico atribuído posso pedir para mudar? Sim. Pode fazê-lo e deve ser ter essa possibilidade. Deve falar com a equipa médica, chefe de serviço ou recorrer ao gabinete do utente.
Se tiver uma consulta marcada e faltar sem avisar o que é que acontece? Caso não possa ir deve desmarcar pelo menos cinco dias antes, a menos que tenha sido informado com essa antecedência. Nesse caso tem direito a pedir nova data. Caso falte, tem sete dias para justificar como numa falta ao emprego. Se não o fizer ou o motivo não for válido, tem de pagar a taxa moderadora como se tivesse ido e voltar ao médico para ser referenciado de novo.
Também há tempos máximos de espera após inscrição para operação? Sim e pela mesma lógica de prioridades: 72 horas nas situações mais urgentes, 15 dias num segundo patamar, dois meses num terceiro e no máximo nove meses nas situações menos urgentes. Nas doenças oncológicas, o tempo máximo é 60 dias. Em caso de incumprimento, além de queixa à ERS pode dar entrada com um pedido de condenação da administração ao cumprimento de deveres num tribunal administrativo, explicam os juristas da Católica.
Se os tempos forem excedidos tenho direito a ser operado noutro sítio? Sim. São emitidos vales para transferência para hospitais públicos em função da prioridade e no máximo após quatro meses à espera. Caso não seja possível garantir resposta no tempo máximo previsto na lei, o utente tem direito a ser operado num hospitalar particular, podendo escolher de um leque de unidades identificadas como tendo capacidade para a operação em causa. Pode recusar, presumindo-se que aceita caso não diga nada num prazo até 15 dias consoante a prioridade. Se recusar, continua à espera no hospital de origem mas poderá sempre usar o vale. Quando o vale não é usado e a recusa não é comunicada é tirado da lista de espera. O hospital que aceite o vale tem de operar até 25% do tempo de espera inicial. Pode sempre reclamar e as coimas às instituições podem atingir os 44 mil euros.
Um doente internado tem direito a acompanhamento? Sim e não tem de ser familiar. As grávidas podem estar acompanhadas em todas as fases do parto. Até 18 anos há direito a acompanhamento permanente do pai ou mãe e a partir dos 16 o jovem pode escolher a pessoa. Também pessoas com deficiência ou dependência têm direito a acompanhante permanente, de dia ou noite. Mas as unidades podem estabelecer regras. O acompanhante de uma pessoa internada que esteja isenta de taxas tem direito a refeição gratuita se permanecer no hospital pelo menos seis horas/dia e se o doente estiver em perigo de vida, em período pós-operatório até 48 horas ou em isolamento. Este direito aplica-se também caso o acompanhante viva a mais de 30 km da unidade ou for uma mãe a amamentar uma criança internada.
O que penso é importante no tratamento? Sim. O consentimento informado é obrigatório em todas as circunstâncias, seja na prescrição de medicação ou numa operação. Contudo, adverte Dias Pereira, mesmo o novo diploma não detalha muito esta área que entende que também precisaria de legislação própria. O decreto refere que o consentimento ou recusa da prestação devem ser declarados de forma livre e esclarecida pelo utente, salvo disposição da lei. O que implica direito a ser “informado da sua situação, as alternativas possíveis de tratamento e a evolução provável do seu estado” de forma “objectiva, completa e inteligível”.
A família do doente tem direito a ser informada da sua situação clínica? Sim, a menos que o doente expresse que não quer ou haja matéria em sigilo clínico.Na ausência do doente, prevalece o direito ao sigilo, dever dos profissionais de saúde salvo decisão judicial
Se tiver algum problema de saúde e houve indícios de negligência ou falha do serviço, o que fazer? Para a IGAS averiguar responsabilidade disciplinar tem receber queixa até um mês após a ocorrência. Se houver matéria para responsabilidade criminal articula com o Ministério Público ou pode avançar com queixa-crime. Também pode fazer queixa nas respectivas Ordens. Mas e se o doente sofre um dano associado a uma espera de sete horas numa urgência, em que não se antevê um profissional directamente responsável? Pode desencadear um pedido de indemnização ao Estado ou outro por dano por “culpa do serviço”, explicam os juristas da Católica.

