11.5.20

Sem passageiros e sem sustento, taxistas rodam pelas ruas da amargura

Cristiana Faria Moreira, in Público on-line

É a incerteza, mas sobretudo a descrença que paira sobre os taxistas por estes dias, quando começam lentamente a regressar à normalidade. Antral propõe apoios a fundo perdido e circulação alternada de táxis. “Ninguém tenha ilusões, que isto nunca mais vai ser como era.”

Habituado a percorrer as ruas do Porto há 20 anos, Carlos Moreira diz que já nem sabe o caminho para o Aeroporto Sá Carneiro. Em média, fora de pandemias, fazia sempre três serviços por dia nessa direcção, levando os turistas que partiam para outros destinos. Já era um “bom serviço”. Ele lança a frase e ri-se de nervoso, porque o cenário que (não) se vê nas ruas desta cidade — e que se repete um pouco por todo o país — é desolador para quem tem no movimento, no pulsar da cidade, o seu ganha-pão.

Quando foi decretado o estado de emergência, este taxista de 47 anos não teve mais a fazer do que encostar o carro em casa. “Para sair de casa e fazer um ou dois serviços, mais vale ter o carro parado do que andar a gastar combustível.”

Uma casa “banhada pelo sol” num olival em Porto de Mós
Regressou ao trabalho na segunda-feira, no primeiro dia de regresso à normalidade possível. Mas o que encontrou nas ruas não lhe trouxe grande ânimo. “Está muito mau. Está mesmo tudo parado. Agora, uma pessoa faz um serviço de quatro euros. Se fizer dois de manhã e dois de tarde faz 16 euros. Não dá para as despesas.”

Em Lisboa, o desânimo é semelhante. Maria de Fátima Henriques conduz um táxi na capital há cinco anos. É trabalhadora independente e decidiu parar a 13 de Março, antecipando a falta de serviço e o receio de poder mais facilmente ficar infectada por ter uma doença auto-imune.

Voltou às estradas também na segunda-feira, mas os clientes escasseiam. “Estou aqui na Praça de Entrecampos desde as 9h20 da manhã. São 11h10. Segunda-feira fiz 27 euros, terça-feira 30 euros, e quarta-feira fiz oito serviços, 50 euros. Ontem [quarta-feira] houve um bocadinho mais de movimento e hoje já estão as praças cheias. Isto está muito mau.”

Quando foi para casa, requereu os apoios libertados pelo Governo aos trabalhadores independentes. Recebeu 162 euros, referentes ao mês de Março. “Não tenho qualquer problema em dizer isto: tenho dois meses de renda em atraso. Não sei quando nem como vou pagar. Para pagar uma renda de 375 euros, fora água, luz, gás, essas coisas todas... veja como é que eu estou.”

Sem poder ficar em casa por não ter rendimento suficiente para dar conta das despesas, não teve outra solução senão voltar às ruas. “Aqui, fazendo 20 ou 30 euros, sempre vou ganhando qualquer coisa”. Ainda na manhã de sexta-feira, por volta das 15h30, tinha feito apenas um serviço, de 4,35 euros.
Com as cidades fechadas em casa para travar a propagação do surto de covid-19, com os turistas que desapareceram repentinamente das ruas, as perdas rondam entre os 80 e os 90%, segundo apontam motoristas, centrais e associações do sector.


A pandemia chegou em péssima altura, depois de dois meses já por si fracos, como são Janeiro e Fevereiro. Agora, enchem as praças, esperam horas e horas por uma chamada, queimam combustível a fazer quilómetros pelas cidades à procura de clientes, que pouco aparecem.

Na Raditáxis - Cooperativa dos Rádio-Táxis do Porto, as quebras foram “brutais”. “De um dia para o outro, tivemos quebras de serviço de 85% para aquilo que era o normal para esta época do ano”, nota o seu presidente, Agostinho Seixas.

Passaram de quase 2000 chamadas para 300, 400. Em Abril, três quartos da frota — que é, no total, de 421 viaturas, cerca de 900 motoristas — esteve parada. “Estamos a falar de uma facturação média por viatura na ordem dos 2200 euros que passou para pouco mais de 300 euros por mês, o que não dá sequer para a pagar o ordenado do empregado, nem tão pouco a segurança social”, sublinha Agostinho Seixas, que tem 13 carros nas ruas do Porto. Colocou os motoristas em layoff total. “É a maneira menos penalizadora para as empresas que têm de contratar mão-de-obra. A penalização é muito menor do que terem a viatura a trabalhar, com gastos.”

“Estamos a falar de uma facturação média por viatura na ordem dos 2200 euros que passou para pouco mais de 300 euros por mês, o que não dá sequer para a pagar o ordenado do empregado, nem tão pouco a segurança social”

Agostinho Seixas, presidente da Raditáxis
Tanto a Retális como a Autocoope, duas das maiores cooperativas de táxis de Lisboa, falam também em quebras acima dos 80%. “A quebra é brutal, não tem qualquer explicação. Mesmo hoje, em que já se nota um bocadinho mais de movimento, é muito normal um carro ir para a rua e passadas cinco ou seis horas de trabalho ter cinco ou dez euros feitos”, nota Pedro Lopes, presidente da Retális. “Se olhássemos para isto com racionalidade, não valeria a pena ir ara a rua.”

Neste momento, a Retális deverá ter 60% da frota — no total são 770 carros e cerca de 1200 motoristas — a trabalhar. Estão a receber 500, 600 chamadas por dia, quando, por esta altura, o normal seria chegarem às 4000. Durante o estado de emergência, houve dias em que não chegaram às 300.

“Ninguém perdoa a despesa”
Na semana passada, a central já começou a receber mais chamadas, mas é apenas “um ligeiro aumento”. Na Raditáxis, no Porto, notou-se também mais movimento. Tem agora cerca de 180 viaturas nas ruas para responder a 500 chamadas diárias. No entanto, como muitos motoristas voltaram ao activo após do fim do estado de emergência, a maior procura pelo serviço acaba por não ter tanta relevância. “Este bolo está a ser dividido por mais pessoas”, repara Agostinho Seixas.

Paulo Casqueiro, taxista há 32 anos, confirma o cenário: “Os clientes são praticamente os mesmos, mas há mais táxis na rua.” Este taxista de 50 anos tem cinco motoristas a trabalhar para si. Colocou dois em layoff total e três em parcial. Quando falou com o PÚBLICO, ainda não tinha recebido o apoio do Estado. “Vai ser muito difícil aguentar cinco pessoas”, admite.

O sector perdera já passageiros com o boom das plataformas como a Uber ou a Bolt, dos serviços de car sharing ou das empresas de transporte privado, fazendo com que as perdas no sector chegassem a 30%, diz Florêncio Almeida, presidente da Associação Nacional dos Transportes Rodoviários em Automóveis Ligeiros (ANTRAL). A pandemia veio acentuar, como nunca se vira, as dificuldades dos taxistas.

António Pereira conduz carros pelo Porto desde os 23 anos. Tem 60 e nunca viu nada assim. Perante uma cidade paralisada também optou por parar os três carros que tem habitualmente nas ruas. Regressou na semana passada, mas o serviço “está precisamente igual” ao da última semana de Março.

Chegou à Rotunda da Areosa às 7h50 e fez um serviço de 4,75 euros. “Agora estou aqui novamente e ainda estou em terceiro lugar”. Passaram-se duas horas. “Na terça-feira andei aqui 12 horas amarrado a um carro e facturei 14,75 euros”. Num dia normal, por esta altura, e dependendo sempre da “sorte” dos serviços, faria entre 80 e 100 euros.

Não lhe sai outra palavra a não ser “mau” para a crise que o sector atravessa. E quando o layoff para as empresas terminar ainda será “mais complicado”, antecipa.

“As despesas ninguém perdoa. Se deixarmos de pagar é mais gente que vai para o desemprego”. É por isso que diz que o sector vai ter de emagrecer: “Alguém vai ter de sair. Onde é que as empresas têm hipótese de estar a pagar despesas com receitas com 400 euros?” E os custos com o carro, os seguros que ultrapassam os 2000 euros, manutenção, impostos, mantêm-se.

Ele diz que está a fazer menos dinheiro agora do que nos anos 90. O turismo, que era um garante do serviço de táxi, será agora carta fora do baralho. Perante a incerteza do que aí vem, uma lenta retoma do turismo, com famílias mais empobrecidas e com o “fantasma” da doença a pairar sobre nós, António não antecipa um “futuro risonho”: “Ninguém tenha ilusões, que isto nunca mais vai ser como era.”

Dos passageiros às entregas
Durante o estado de emergência, as cooperativas de táxi também se foram tentando reinventar. A Autocoope, por exemplo, criou um serviço de entregas ao domicílio, 24 horas por dia, desde quatro euros por entrega em cidades como Lisboa, Guimarães, Almada e Faro. Paulo Casqueiro chegou a fazer três entregas. “Sempre é mais um serviço.” A Câmara de Lisboa lançou também uma plataforma com informação sobre os estabelecimentos comerciais abertos na cidade durante o estado de emergência, articulando esse serviço de entregas com a Autocoope e a Kapten — no Porto, a Raditáxis diz que apelou ao município a realização de uma iniciativa semelhante, mas a ideia não foi acolhida.

A passagem do estado de emergência para a situação de calamidade trouxe novas regras para o sector:num táxi, os bancos dianteiros devem agora ser utilizados apenas pelo motorista e atrás só podem ir dois passageiros. António Pereira faz questão de deixar um reparo à norma: “Se vier um casal com o filho, não os posso transportar, o que é uma aberração, porque é uma família.”

A Federação Portuguesa do Táxi lançou um guia de regresso à actividade com instruções e conselhos para os motoristas, que se tiveram de adaptar a esta nova forma de trabalho (e de vida): máscara no rosto, álcool gel sempre à mão, separador em acrílico a separá-los dos clientes, desinfecção das portas sempre que sai um cliente.

Maria de Fátima Henriques diz que as pessoas podem ter confiança em andar nos táxis, porque a higienização tem sido uma prioridade. E aproveita a ocasião para deixar um apelo à câmara e às juntas de freguesia de Lisboa: mantenham as casas de banho públicas abertas para que os taxistas possam, entre outras coisas, lavar as mãos com frequência. “Ontem, uma casa de banho pública em Campo de Ourique estava fechada devido à covid-19 e corri as pastelarias ali à volta para poder ir à casa de banho. Toda a gente me negou o acesso.”
Desistir do sector
No Porto, Agostinho Seixas diz já ter recebido relatos de pessoas que estão a passar dificuldades. O Banco Alimentar, dentro da Rede de Emergência que criou para fazer face aos efeitos da pandemia, nota que os taxistas estão entre os que têm pedido apoio.

Faro vai criar sistema de entrega ao domicílio de produtos alimentares
Pedro Lopes também fala de “situações dramáticas” em Lisboa. “A maior parte das empresas de táxis são microempresas, ou seja, é um táxi. As pessoas que só têm o sustento naquele carro, estarem dois meses parados, com as obrigações fixas que têm por mês... é um prejuízo brutal.”

Haverá taxistas a desistirem da actividade? O presidente da Retális não tem dúvidas: “Inevitavelmente isso vai ter de acontecer”, vaticina. “Notamos bem nos nossos associados uma descrença, vontade de desistir, mas desistir numa altura destas é como se toda a sua vida, que está na licença de um carro, fosse deitada fora.”

Florêncio Almeida também acredita que isso irá acontecer, mas que não será fácil. “Houve pessoas que fizeram investimentos de milhares de euros e têm dificuldades em reaver esse investimento. Da forma que isto está, ninguém vai investir num sector que está falido”, sublinha.

“Notamos bem nos nossos associados uma descrença, vontade de desistir, mas desistir numa altura destas é como se toda a sua vida, que está na licença de um carro, fosse deitada fora”

Pedro Lopes, presidente da Rétalis
O presidente da ANTRAL nota que, face a este cenário, o Governo tem de ajudar o sector com apoios “a fundo perdido”. “Mesmo com o layoff para os funcionários, a empresa tem de pagar 33%. Se um táxi não trabalha, ainda é mais uma sobrecarga para a empresa. Vale mais despedir, não há outra hipótese”, nota. “O que os táxis fazem hoje não dá sequer para o ordenado de um motorista, quanto mais pagar as despesas da viatura, seguros, IUC, câmaras municipais, centrais.”

Com o regresso de centenas de motoristas às ruas na semana passada, a ANTRAL e a Federação Portuguesa do Táxi escreveram ao ministro do Ambiente e ao presidente da Câmara de Lisboa, pedindo para que seja implementado o trabalho alternado dos táxis, para a oferta não ser demasiado canibal.

Segundo refere a carta subscrita pelas duas associações, as câmaras municipais podem definir “condições excepcionais de circulação”, de que é exemplo a circulação alternada das viaturas do contingente concelhio. Em Lisboa, haverá cerca de 3500 táxis com licença para circular (no Porto são perto de 720, sendo os dois maiores contingentes em Portugal Continental), por isso Florêncio Almeida e Carlos Ramos pedem a Fernando Medina que tome a iniciativa de determinar a “restrição de circulação de veículos cuja licença seja par, em dias pares, e aqueles cuja licença seja ímpar, nos dias ímpares, por um período de 30 dias renovável, enquanto a presente situação de calamidade se mantiver”. Será uma tentativa para salvar o sector: “O táxi não tem possibilidades de sobrevivência se continuarmos assim.”