Ana Dias Cordeiro (texto) e Matilde Fieschi (fotografia), in Público online
Helena Leitão defende que o crime de violação passe a ser de natureza pública. “A sociedade deve assumir a responsabilidade pelo processo e pela punição do crime”, diz a magistrada.
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No fim deste mês a procuradora da República Helena Leitão termina o seu segundo mandato como membro do Grupo de Peritos sobre o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Grévio) do Conselho da Europa. A magistrada e docente no Centro de Estudos Judiciários não será reconduzida por já ter cumprido o máximo de dois mandatos (de quatro anos cada) desde que o Grévio foi constituído em 2015. São membros do Grévio 15 peritos eleitos num universo de 33 países, para fiscalizarem o cumprimento da Convenção de Istambul para combate à violência doméstica e contra as mulheres nos Estados-membros. Ao fazer depender um inquérito-crime de uma queixa por parte da vítima de violação, mantendo a natureza semipública deste crime, Portugal continua “a desrespeitar uma das obrigações a que se vincularam” todos os países que ratificaram este tratado, salienta Helena Leitão
Vê apenas vantagens em que o crime de violação seja de natureza pública?
A posição do Grévio é clara: a Convenção de Istambul, no seu artigo 55.º, ao referir que a investigação e o julgamento pelo crime de violação, entre outros, não depende inteiramente de queixa, e sobretudo quando diz que o processo pode prosseguir mesmo que a vítima retire a sua declaração ou queixa, não deixa dúvidas sobre a natureza pública que o crime de violação deve ter.
Por um lado, tendo em atenção o carácter particularmente traumatizante do crime de violação, pretendeu-se aliviar o ónus que recai sobre a vítima se o procedimento criminal por este crime depender exclusivamente de uma queixa por parte dela. Por outro lado, porque a violação não pertence tão-somente ao domínio da vida privada das vítimas. É uma matéria de interesse público, que compete ao Estado investigar, julgar e punir, no interesse de todos. Nesta perspectiva, é a sociedade que assume a responsabilidade pelo processo e pela punição do crime.
Não a convencem os argumentos de alguns partidos políticos de que tornar o crime público comprometeria a autonomia da vítima e evidenciaria um papel paternalista do Estado?
São argumentos quase de princípio, que defendem que a mulher tem vontade de entender e de querer. Foi exactamente o mesmo argumento utilizado no passado em relação à violência doméstica. O argumento era o de que estávamos a menorizar a mulher, ao presumir que ela não tinha capacidade para se manifestar sozinha e decidir avançar ou não com o procedimento criminal. Dizia-se ainda que o que íamos conseguir com esse regime era vitimizar duplamente as mulheres porque, não querendo apresentar queixa, estas tinham de enfrentar a oposição, muitas vezes da própria família, que via a situação como um estigma para a mulher.
Os grandes argumentos então apresentados era o paternalismo do Estado, no sentido de querer tomar conta das pessoas e não as deixar decidir pela sua própria cabeça, a autonomia das vítimas que deixavam de poder decidir sobre a sua vida, e depois o facto de a sociedade não estar preparada para compreender as vítimas, que rapidamente se tornavam culpadas de o crime ter acontecido.
Não podemos esquecer-nos de que a vítima fica normalmente a sofrer de stress pós-traumático, depressão e sintomatologias várias que podem persistir para o resto da sua vida. Exigir a essas mulheres, fragilizadas e inseguras, que sejam capazes de decidir se querem apresentar queixa num determinado lapso de tempo – seja ele de seis meses, um ano ou de vários anos –, é onerá-las com o peso desmedido de uma decisão, a pretexto de respeitar a autonomia da vontade da vítima e de evitar o paternalismo do Estado.
No seu entender, os argumentos de quem se opõe a que seja crime público não colhem de todo?
Apesar da minha posição, entendo que não podemos ignorar vários argumentos a favor da manutenção do carácter semipúblico do crime de violação. Falo, por exemplo, daqueles que apontam que a estratégia deve ser a de protecção das vítimas e que os serviços públicos e os tribunais não estão preparados para intervir, apoiar e compreender as vítimas de violação. Seja como for, o reconhecimento da natureza pública da violação implica a existência de uma rede de apoio a funcionar cabalmente, bem como a formação adequada de todos os profissionais envolvidos no seu acompanhamento.
Os Estados que não converteram a violação em crime público estão a incumprir os compromissos assumidos perante o Conselho da Europa?
Estão a desrespeitar uma das obrigações a que se vincularam ao ratificar a Convenção de Istambul: no caso, a de garantir que o inquérito e as investigações pelo crime de violação não dependem de queixa apresentada pela vítima. Estarão também a desrespeitar a obrigação de prosseguir com o procedimento criminal por violação caso a vítima tenha apresentado queixa e queira desistir da mesma.
Isso mesmo consta das avaliações do Grévio, a primeira em 2019 e a segunda em 2022.
Portugal foi avaliado pelo Grévio e o relatório final e respectivas recomendações são públicos desde 21 de Janeiro de 2019. Após análise cuidada da realidade portuguesa, o Grévio entendeu instar as autoridades portuguesas a alterarem a sua legislação, no que diz respeito, em particular aos crimes de violência física e sexual. Dito de outro modo, foi recomendado ao Estado português, com importância máxima revelada através da forma verbal "instar" que alterasse a sua legislação no sentido de converter o crime de violação, entre outros, em crime público. A força política desta recomendação formulada pelo Grévio, conjugada com os princípios da boa-fé e de que os acordos são para cumprir – pacta sunt servanda –, regula as relações entre os Estados do Conselho da Europa e deviam já ter sido levados em conta pelo legislador português. As convenções internacionais, por norma, são vinculativas.
Foi recomendado ao Estado português, com importância máxima revelada através da forma verbal ‘instar’ que alterasse a sua legislação
E quais são as consequências se não forem cumpridas?
Não existe um tribunal internacional, como o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, por exemplo, para apreciar directamente queixas apresentadas pelos Estados-Parte, organizações ou pessoas por violações dos direitos consagrados na Convenção de Istambul ou por desobediência às recomendações do Grévio. Porém, e entendendo que os direitos das mulheres são obviamente direitos humanos, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos está a começar sistematicamente a mencionar nos seus acórdãos de condenação dos Estados não só a Convenção Europeu dos Direitos Humanos, mas também a própria Convenção de Istambul.
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