10.5.23

Fugiu do país numa rusga, regressou, foi emboscado em Espanha e condenado por 144 crimes: Camilo, dono da maior casa de alterne de Bragança

Joana Ascensão e Rui Duarte Silva, in Expresso


Detentor de dois bares de alterne em Bragança, foi um dos principais alvos da polícia após a cidade ter sido capa da revista “Time” por um escândalo de prostituição. Camilo acabou a ser condenado, mas fugiu para o Brasil. E quando as notícias de um mandado de busca atravessaram o atlântico, aterrou de livre vontade no Porto, onde lhe carimbaram o passaporte. Vinte anos depois da polémica, alega que ainda é o Estado que lhe deve dinheiro. Esta é a sua história


Hoje com claros sinais de degradação, o Montelomeu ainda ostenta o que foi. Depois de uma porta majestosa, o espaço redondo da discoteca tem um bar ao centro e um balcão circulares onde restam papéis manuscritos da contabilidade. Numa plataforma elevada, evidencia-se um palco e um varão onde, além de shows de strip, chegou a haver sexo ao vivo. Mas com dois pisos de mil metros quadrados cada um, a discoteca esconde muito mais do que um sítio para dançar. Distribuídas à volta do bar, há 27 suítes, algumas com jacuzzi, um restaurante, um refeitório, ginásio, sauna, cabeleireiro, piscina e campo de ténis, numa enorme extensão onde, além de Camilo e a família, chegaram a viver avestruzes.

Comprar aquele espaço erigido na melhor vista para a cidade, paredes-meias com o santuário de São Bartolomeu, foi o passo natural para Camilo. Como qualquer filho de imigrantes, daquela terra Camilo só conhecia os agostos, tórridos, em que a cidade ficava menos esvaziada. Já tinha ganho algum dinheiro no negócio do imobiliário, a alugar condomínios em França. Até que, num desses agostos, já casado com Eliane, foi explorar as potencialidades empresariais da noite bragantina. A mulher incentivou-o a comprar a ‘Bruxa’ com o dinheiro das poupanças. E notando o ritmo da caixa registadora, a sugestão foi aceite com relativa segurança. “Três meses depois aquilo era uma mina de ouro. Até o procurador lá ia uma vez por semana”, recorda Camilo Gonçalves no dia em que faz uma visita guiada ao Expresso pelo passado do alterno de Bragança.


Mas o Montelomeu, comprado cinco anos depois (2002), era muito maior do que os outros, mais luxuoso e afastado o suficiente dos olhares da cidade para que outros clientes, mais prestigiados, pudessem alimentar o negócio. Rapidamente dominou a noite de Bragança naquele início de novo milénio.

Uma rua tão carente de movimento, como a que sobe até ao santuário, passou a ser destino preferencial dos táxis, num corrupio para baixo e para cima. Às mulheres de fora a entrada estava interdita. As de dentro, quase todas brasileiras, ganhavam dinheiro para pagar a diária no quarto e ainda para gastar na cidade, em cabeleireiros, floristas, taxistas. A Camilo caíam na conta bancária “milhares de euros por dia”, diz-nos. O suficiente para pagar a quem cozinhasse e fizesse limpezas no Montelomeu. Na altura de cabelo preto comprido organizado num rabo de cavalo, nunca andava sem um ou dois seguranças. Além de um apartamento ao lado do Montelomeu – e dos dois bares – detinha quatro carros, entre eles “o mais caro da cidade, igual àquele em que morreu a princesa Diana”, e ainda apoiava com uma renda de cinco mil euros o clube desportivo local.

A RUSGA

Quando a 30 de abril de 2003 a agência Lusa noticiava o movimento de um coletivo de mulheres autodenominadas “Mães de Bragança” contra o mercado da prostituição na cidade, Camilo não deu grande importância. Mas a partir daí algo mudou.

Era preciso acabar com o “flagelo da prostituição”, escreviam as “mães” no abaixo-assinado entregue ao bispo, ao governador de Bragança e ao presidente da Câmara, além da agência Lusa. As quatro mulheres (e outras tantas que assinaram o documento) diziam-se prontas a declarar “guerra aberta” às meninas brasileiras. “Não podemos continuar a permitir que Bragança seja conhecida como a cidade número um em vida noturna, em droga, em consumo de bebidas alcoólicas e em prostituição”, podia ler-se no documento.

Se até ali a economia local se regozijava com “as brasileiras”, começaram a empilhar os pedidos dos jornalistas para entrarem nos bares. As reportagens também. Mas o tema nacional saltou fronteiras quando a revista “Time” dedicou a capa de 14 de outubro de 2003 (e oito páginas) ao assunto, chamando a Bragança “Europe´s New Red Light District” (a nova cidade vermelha da Europa).

A cidade até então encoberta pelas fronteiras do interior estava agora à vista dos olhares externos – e a razão incomodava. Tanto, que a polícia começou a circundar a meia dúzia de bares de alterne que ali existiam, em rusgas frequentes. “A polícia ia, tentava apreender tudo o que poderia ser ilícito, como as “camisinhas” das mulheres, os livros das contas, os lençóis descartáveis e pouco mais”, conta-nos o empresário. “Na penúltima rusga veio uma subcomissária e disse-me que sabia que eu tinha um cofre lá em baixo. Você quer colaborar? Disse que colaborava, claro. A mulher ficou de boca aberta, porque pensava que houvesse droga. O cofre não estava cheio, mas tinha ainda assim uns 40 mil euros, que eles levaram com eles”.

Mas nada foi igual àquela noite dos Namorados, de 14 de fevereiro de 2004. “Tinha amigos no Ministério Público que me avisaram de que ia haver uma grande rusga”, recorda o empresário.

Camilo não estava. Observava ao longe o movimento do negócio. Tentava manter-se omnipresente através do telefone, mas afastado o suficiente para não ser apanhado na rusga que sabia estar a ser preparada para aqueles dias. E ainda a noite não ia a meio quando agentes da polícia e inspetores do SEF lhe entraram de metralhadoras e cabeça tapada pela discoteca dentro, ordenando “mulheres para um lado e clientes para outro” e lhe fecharam a casa. Metros ao lado, Camilo recebeu uma chamada do gerente do ML. “A casa caiu, Camilo”. “Caiu? Alguém está ferido?”, respondeu-lhe o dono, ignorando a metáfora, até perceber que não só a sua, mas todas as casas de alterne tinham sido fechadas em Bragança. Para nunca mais abrirem. Camilo desapareceu nessa noite do radar das autoridades.

A FUGA

Dirigiu-se a Alcanices, em Espanha, e na mesma noite em que viu arruinado o negócio que lhe garantia uma vida de luxo há sete anos, negociou a compra do ‘Club Playboy’, um bar do outro lado da fronteira. Mulheres e restantes funcionários foram transferidos para lá. Mas não duraria mais de meio ano até que as autoridades espanholas o pressionassem para acabar com o negócio.

E ao perceber que mais cedo ou mais tarde seria apanhado, voou desde o aeroporto de Madrid até ao Brasil, para só voltar daí a quase uma década.

Mais tarde, Camilo seria acusado num julgamento à revelia por 144 crimes de lenocínio e um crime de auxílio à emigração ilegal. Segundo o Tribunal da Comarca de Bragança, as “subidas” no ML, onde se provou viverem uma média de 20 mulheres, rendiam por dia pelo menos 600 euros e na ‘Bruxa’ rendiam uma média de 250 euros diários.

Nas contas da acusação, entre 2003 e a data do seu encerramento tinham passado 210 mulheres pelo ML para trabalhar na prostituição. Camilo diz que só lá trabalharam três portuguesas.

Na acusação do Ministério Público, é dito que Camilo recrutava mulheres do estrangeiro, especialmente do Brasil, a quem pagava passagens aéreas com valores inflacionados que iam sendo descontados no trabalho diário das mulheres. Além disso, obrigava-as a ficar enquanto não pagassem a dívida.

Ao Expresso, o empresário nega. “Se isso fosse assim, as mulheres fugiam e iam à polícia. E a verdade é que nunca lá entrou uma denúncia. Passar aqui três meses rendia muito mais do que três anos na terra delas”, argumenta. Mas, de facto, muitas ultrapassaram o tempo limite de legalidade no país, permanecendo ilegais.

Somando tudo, entre cartões de entrada, shows de strip, bebidas e atos sexuais, o Ministério Público considerou que o empresário e a esposa lucraram ilicitamente 4 milhões e 700 mil euros. O montante, considerado perdido para o Estado, teria de ser pago pelos arguidos. Como consequência, o ML e a ‘Bruxa’ passaram para as mãos do Estado, bem como o recheio. Mesmo assim, sobrou uma dívida a exceder o milhão e 800 mil euros.

Em 2012, em recurso no Tribunal da Relação do Porto, os advogados de Camilo conseguiram ver o valor diminuir para “apenas” 313 mil euros a pagar ao Estado, tendo igualmente revogado a decisão anterior de declarar perdidos a favor do Estado os carros, os estabelecimentos ML e Bruxa e o recheio dos mesmos. Ao todo, Camilo seria condenado a oito anos de prisão.

A EMBOSCADA

Quando a notícia de um mandado de detenção internacional chegou ao Brasil, Camilo havia refeito a vida na terra da esposa e erguido uma empresa de construção civil com 20 funcionários. “Fui para o Brasil para não ir preso. Mas quando lá fui notificado pelo tribunal português tive medo”, confessa. O medo de ser preso no país natal da companheira, onde também o sogro já teria estado detido, levaram-no a uma decisão difícil: ia voltar a Portugal pelo próprio pé.

Escolheu um voo diferente do da família, para que aos filhos e à esposa não permanecesse na memória a imagem do pai e marido a ser detido. Mas quando aterrou no aeroporto Francisco Sá Carneiro, no Porto, viu o passaporte a ser-lhe carimbado como se de um cidadão sem crimes se tratasse. “Desejaram-me as boas-vindas e eu pensei: ‘Então eu sou procurado pela Interpol, chego a Portugal e é isto?’”. Agradeceu e seguiu caminho.

Invariavelmente, nos meses seguintes, evitou Bragança. A vida passava por Setúbal, ia algumas vezes ao norte. Até que um dia foi convidado para um almoço por um amigo, a quem pede para evitarem Bragança. Acabam a almoçar em Alcanices, na vizinha Espanha.

Das memórias desse almoço pouco lhe sobra depois do primeiro gole no vinho. Quando acordou, estava algemado a passar a fronteira para o lado português. Tinha caído na esparrela de uma emboscada preparada pelas autoridades. E daí teve passagem direta para quatros anos de prisão efetiva, primeiro na cadeia de Paços de Ferreira e por fim no instituto prisional de Bragança.

Camilo saiu da prisão em 2018. Cumpriu algum tempo de domiciliária, até terminar a pena e decidir que não mais havia de viver em Portugal. Como negociante nato, em março abriu uma empresa na Suíça, de isolamentos, e é lá que refaz a vida.

Ao apartamento que mantém paredes-meias com o que resta do ML volta só de vez em quando, quase sempre de carro. Ainda agora são visíveis as dezenas de câmaras de vigilância a circundar o perímetro do edifício.

Só no ano passado o Tribunal de Bragança autorizou a avaliação do recheio do ML, assim como da sua habitação. O prejuízo pelos estragos e roubos ocorridos quando o património estava nas mãos do Estado, visíveis à vista desarmada naquilo que hoje é o esqueleto da antiga discoteca, ascendem aos 500 mil euros – mais do que o valor que Camilo ainda terá de pagar ao Estado. Nas suas contas, e vinte anos depois, ainda é o Estado que lhe deve dinheiro. Mas o processo está parado, até que volte a ter dinheiro para desbloquear os serviços dos advogados. A dívida não consegue pagar por alegar não ter dinheiro suficiente. “Como é que eles querem que eu pague se há 20 anos que as minhas contas estão apreendidas em favor do Estado?”, questiona.

De Bragança diz não guardar rancor. Nem das “mães”. Somente das autoridades. “Tinha aqui um património de dois milhões de euros que hoje não vale nada”, lamenta. Quer desfazer-se do que resta do ML e abandonar de vez a cidade que, afinal, só foi temporariamente sua.