Predo Crisóstomo, in Público
Governo acolheu recomendação da provedora de Justiça. Contribuintes que venderam casa em 2019 e 2020 e não conseguiram reinvestir ganhos estão a ser notificados pelo fisco para pagar IRS.
Os proprietários que venderam a habitação durante a pandemia e obtiveram mais-valias com essa alienação vão ter mais tempo para reinvestir os ganhos alcançados na compra ou na construção de um novo imóvel, também destinado à habitação própria e permanente, de forma a evitar serem tributados em IRS sobre essas quantias.
A medida é temporária e foi incluída pelo Governo numa das propostas de lei do pacote Mais Habitação depois de a Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, ter recomendado ao executivo que suspendesse, durante dois anos, o prazo dado aos contribuintes para reinvestirem as mais-valias, porque há cidadãos que não estão a conseguir cumprir os prazos de reinvestimento por causa dos atrasos registados no sector da construção desde o início da pandemia de covid-19.
De acordo com o Código do IRS, quando um contribuinte obtém mais-valias ao vender a habitação própria e permanente, não paga IRS sobre esses ganhos se, num determinado prazo, os reinvestir na compra, construção ou melhoramento de um outro imóvel para habitação própria e permanente do próprio e do agregado familiar.
O período para o concretizar terá de ser entre os dois anos anteriores à data da realização da mais-valia (24 meses) e os três anos seguintes (36 meses).
Só que, com a pandemia, a provedora de Justiça apercebeu-se de que as dificuldades “sentidas na actividade da construção civil e no funcionamento dos serviços públicos, decorrentes dos isolamentos e confinamentos dos anos 2020 e 2021, estão agora a reflectir-se em atrasos na conclusão da construção ou de obras em imóveis”. E quem vendeu imóveis em 2019 e 2020 (e indicou nas declarações de IRS relativas a esses períodos a intenção de reinvestir as mais-valias) está a ter dificuldades em cumprir o prazo de 36 meses, mesmo tendo realizado já um contrato-promessa; quem não o conseguiu reinvestir dentro do prazo está agora a receber notificações da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) para pagar IRS sobre aquelas quantias.
O que o Governo propõe ao Parlamento – onde o PS, com maioria absoluta, garante a aprovação da iniciativa desenhada pelo executivo – passa por suspender a contagem daquele prazo “durante um período de dois anos, com efeitos a 1 de Janeiro de 2020”.
É exactamente a solução que foi apresentada pela Provedora de Justiça, quando, a 23 de Março, dirigiu um ofício ao secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Nuno Santos Félix, mas cujo conteúdo só foi divulgado na última sexta-feira, semanas depois de o Governo enviar a proposta de diploma para a Assembleia da República e um dia depois de o Jornal de Negócios noticiar a existência desta norma transitória na proposta.
Antes de fazer chegar ao Governo esta recomendação em Março, a provedora já tinha alertado o Ministério das Finanças para o assunto no final de Dezembro, e, não tendo recebido até 23 de Março qualquer resposta do Governo a essa interpelação no direito de audição prévia previsto no Estatuto do Provedor de Justiça, avançou para uma recomendação que acabaria por ser seguida pelo executivo no pacote Mais Habitação.
Maria Lúcia Amaral dá conta ao Governo de que tem recebido exposições de pessoas que, tendo declarado em 2019 e 2020 à AT a intenção de reinvestirem as mais-valias para poderem beneficiar da exclusão de tributação no IRS, “estão a ser notificadas para pagamento do imposto, em virtude de terem incumprido o prazo de que dispunham para reinvestir o valor da venda”.
Nas queixas, conta, os cidadãos contam que têm enfrentado dificuldades em avançar com a compra ou com a construção de uma nova habitação por causa do “contexto pandémico”, o que lhes impossibilitou “o cumprimento do prazo legal de reinvestimento e [o] que compromete, agora, a exclusão da tributação nos termos legais”.
Às dificuldades em identificar as “empresas disponíveis para a execução das obras” e à “falta geral de mão-de-obra decorrente de confinamentos e isolamentos”, somam-se “problemas com a administração de parcos recursos por parte dos empreiteiros na gestão de várias obras em simultâneo” ou “problemas com a gestão de equipas diversas de empresas diferentes”. E, além dos problemas a montante, dizem os cidadãos nas queixas que chegaram à provedora, houve em 2020 e 2021 “conhecidos impedimentos e constrangimentos” no funcionamento e no acesso “aos vários serviços públicos cuja intervenção é necessária para as operações em causa”, escreve Maria Lúcia Amaral.
Se nada fosse decidido em sede de IRS, isso seria uma situação “desadequada e injusta, em si e também por comparação com o previsto para as pessoas colectivas, sobretudo porquanto aqui está em causa [uma] medida que se situa na esfera do direito constitucionalmente garantido a uma habitação condigna”, salienta a provedora de Justiça.