É particularmente ridículo ver um homem de meia-idade a tentar fazer-se passar por jovem. É igualmente patético vê-lo a assumir saber pensar como um jovem. Arrisco, ainda assim, refletir sobre o contexto em que nasce e em que cresce um jovem português no século XXI.
Não vale a pena levar esta história demasiado atrás, mas a verdade é que nada nos garante que, apesar de ser hoje claro que a educação na infância é determinante para a aquisição de competências e para o sucesso das aprendizagens futuras, Maria (chamemos-lhe assim) tenha frequentado uma creche. Sobretudo se pertencer a uma família de menores recursos. De acordo com o estudo Portugal, Balanço Social 2022, “67,4% das crianças oriundas de famílias pobres (Q1) não frequentam a creche. Esta percentagem cai para cerca de 50% nas crianças das famílias com maiores rendimentos (Q4).” E se é um facto que a probabilidade de Maria ter frequentado o ensino pré-escolar aumenta, isso continua a ser sobretudo verdade se for oriunda de uma família rica.
Chegada ao secundário, Maria mergulha no caos da escola pública em Portugal. Greves, indisciplina, aventuras pedagógicas, constantes mudanças de programas e métodos de avaliação e, sobretudo, professores cansados, mal pagos e desmotivados (se é que os tem todos, porque este ano há 100.000 alunos com pelo menos um professor em falta) não são exatamente o caldo que esperaria e a que julga ter direito. Se teve o azar de ter apanhado os anos de pandemia, saberá bem que tudo foi, aliás, exponenciado.
Mas mais grave: se Maria é mesmo oriunda de uma família de menores recursos, a probabilidade de ter sido deixada para trás durante os anos da covid é altíssima. De acordo com dados compilados por Alexandre Homem Cristo, “apenas cerca de 1,6% dos alunos beneficiários da Ação Social Escolar estava nas escolas de acolhimento durante o lockdown”. Mas mesmo que tenha escapado incólume aos anos de pandemia, Maria não escapou, de certeza, à grande maldição da escola portuguesa, onde o perfil socioeconómico do aluno continua a ser um enorme preditor do sucesso escolar. De acordo com os dados do PISA 2018, a diferença entre os resultados entre os alunos mais favorecidos e mais desfavorecidos é, aliás, das mais altas da OCDE.
Por esta altura, Maria, apesar de muito jovem, aprendeu já uma coisa: a ideia da escola pública como elevador social é uma absoluta miragem. E sabe bem que, confirmando-se que é filha de pais carenciados, o mais certo é não ingressar no ensino superior (vale a pena ler a última crónica de Susana Peralta em que cita Miguel Herdade: “Se retratarmos Portugal como um grupo de dez jovens, cinco deles andaram no ensino superior. Contudo, se olharmos para dez jovens nascidos em famílias pobres e com pais pouco qualificados, (...) só um conseguiu lá chegar.”
Mas vamos admitir que Maria é a exceção que confirma a regra e que conseguiu, por mérito próprio e muito esforço, uma vaga no ensino superior. Tendo de estudar fora do local da sua residência, resta-lhe agora encontrar uma cama. Vai demorar muito pouco tempo a perceber que não vai ser tarefa fácil. Sabe que em 2021 existiam, em todo o país, necessidades de 108.000 camas para estudantes universitários deslocados. Apesar de Manuel Heitor ter prometido, em 2018, construir 12 mil camas em alojamentos para estudantes entre 2019 e 2022, apesar de Elvira Fortunato ter vindo agora prometer 15.000 “novas” camas até 2026, Maria sabe bem que a verdade é muito diferente: muito pouco se fez e, no total, existirão apenas 16 mil camas disponíveis aos dias de hoje. E isso explica que, só no último ano, o preço de quartos e apartamentos privados destinados a estudantes tivesse aumentado 10,5%. De acordo com o último relatório do Observatório do Alojamento Estudantil, o preço de um único quarto na região de Lisboa situa-se agora nos 450 euros.
Por esta altura Maria já percebeu que fará como todos os outros jovens portugueses: vai esperar até aos 29,7 anos para sair de casa dos pais e fazer-se à vida. Por essa altura tratará também de acender uma vela. A probabilidade de ter direito a uma reforma no fim da vida de trabalho que agora inicia é mesmo matéria de fé
Mas continuemos, qual otimistas irritantes, e admitamos que a nossa estudante consegue recorrer a umas poupanças dos pais e conclui mesmo o ensino superior. As agruras, infelizmente, não acabam aqui. Chegada ao mercado de trabalho, Maria rapidamente se dá conta de que o prémio salarial para quem conclui a universidade, que era de 50% em 2011, é de 27% em 2022 e está em níveis historicamente baixos. Nunca valeu tão pouco a pena investir na formação superior. Mas a verdade é que é com um magro pecúlio que tem de contar para encontrar casa num país em que o Estado há muito desistiu de investir em habitação pública e em que uma aventura política imponderada e mais mal preparada tratou de dar a machadada final no mercado privado de arrendamento.
Evidentemente, por esta altura Maria já percebeu que fará como todos os outros jovens portugueses: vai esperar até aos 29,7 anos para sair de casa dos pais e fazer-se à vida. Por essa altura, tratará também de acender uma vela. A probabilidade de ter direito a uma reforma no fim da vida de trabalho que agora inicia é mesmo matéria de fé.
Tudo isto tem um nome: desesperança. Alguém verdadeiramente acredita que se trata com cheques-livro e férias em pousadas?
O autor é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico
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