Graça Barbosa Ribeiro, in Público on-line
Bruno Gonçalves teve de pedir a outras pessoas, não ciganas, para assinarem o contrato da casa onde queria morar, para não assustar mais um senhorio
A estratégia para a inclusão está aprovada, mas as expectativas em relação ao sucesso são baixas. O fosso cavado entre ciganos e não-ciganos é "imenso".
Vista uma saia preta, comprida e travada; junte-lhe uma camisola da mesma cor, justa, adornada com brilhantes; deixe os cabelos soltos sobre os ombros e ponha brincos grandes, dourados, vistosos. Quando trocar impressões com a pessoa que a acompanha, de preferência alguém com uma indumentária semelhante e de pele morena, fale alto, com uma pronúncia cantada, arrastando a última sílaba das palavras, como os ciganos nas feiras. Entre num supermercado e mexa nalguns produtos - pegue num creme, por exemplo, volte a colocá-lo no lugar e retire outro. Que aconteceu?
"Por esta hora", calcula Olga Mariano, presidente da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas (Amucip), "já se aproximou um funcionário ou um segurança". "Não tarda", continua, "os seus movimentos estão a ser vigiados de forma ostensiva, o que chamará a atenção de outros clientes do estabelecimento, que vão replicar os olhares vigilantes, desconfiados e reprovadores. Agora imagine que isto acontece todos os dias, várias vezes por dia, nas mais diversas circunstâncias", propõe.
A dirigente da Amucip procura mostrar, através do desafio, por que é que os sete anos previstos para a Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas (ENICC), aprovada a pouco mais de uma semana do Dia Internacional do Cigano, que se comemora amanhã, não provocou grandes manifestações de alegria. "Pense nisso - vai entender por que é que os sete anos e as muitas medidas previstas na ENICC são insuficientes, tendo em conta o muito que é preciso mudar para que se possa falar de integração", corrobora o presidente da Federação das Associações Ciganas de Portugal (Fecalp), António Pinto Nunes.
Os dois dirigentes não questionam o documento, produzido a pedido da Comissão Europeia e recheado de metas e medidas nos planos da Educação, do Emprego, da Habitação e da Saúde; não sobrevalorizam o facto de o financiamento comunitário previsto para a sua concretização - mais de 350 milhões de euros - não estar, à partida, garantido; e não se mostram muito preocupados com a circunstância de a estratégia ser desenhada para uma população desconhecida - entre 40 e 60 mil ciganos, calcula-se, sem certezas, já que a etnia não é uma variável considerada no censos e o primeiro estudo sobre a situação social, económica e cultural das comunidades ciganas não passa, ainda, de uma intenção (faz parte, precisamente, do conjunto das medidas previstas na estratégia agora aprovada).
Mudança será lenta
Olga Mariano e Pinto Nunes reclamam, sim, a participação na gestão dos fundos e de alguns dos projectos que venham a ser desenvolvidos, para além da presença, já prevista, no Conselho Consultivo a criar, e ao qual caberá monitorizar, adaptar e avaliar a implementação da ENICC. Isto, explicam, como "um meio de envolver as comunidades ciganas e, principalmente, de contribuir para a sua credibilização junto dos não-ciganos". "Se não for o Estado a mostrar que confia em nós para agarrarmos o nosso próprio destino, como é que as coisas hão-de mudar?", argumenta Bruno Gonçalves, presidente da Associação de Ciganos de Coimbra.
Os três - Olga Mariano, Pinto Nunes e Bruno Gonçalves - sabem, no entanto, que, em qualquer caso, "as coisas" vão mudar "muito devagar". O mesmo admite o secretário de Estado adjunto do ministro dos Assuntos Parlamentares, Feliciano Barreiras Duarte, que coordenou o desenho da estratégia: "Eu diria que o Conselho Europeu foi sábio ao não restringir o prazo expectável destes planos àquele que, normalmente, corresponde ao das legislaturas dos governos, ou seja, a qautro anos. Espero que estes sete anos sejam um marco para os sete anos subsequentes em que, julgo, ainda continuarão a ser necessárias medidas específicas para inclusão destes cidadãos portugueses", afirma o governante, a fazer baixar expectativas.
"É um trabalho para várias gerações", concorda Francisco Monteiro, director executivo da Obra Nacional da Pastoral dos Ciganos (ONPC), dizendo-se preocupado "com o fosso imenso que ao longo de séculos se cavou entre as comunidades ciganas e os restantes portugueses". Sandra Araújo, directora executiva da representação portuguesa da Rede Europeia Anti-Pobreza, concorda. Fala dos "altíssimos muros" que separam uns e outros e do "esforço tremendo" que será necessário para os derrubar.
Não é por acaso que no plano aprovado em Conselho de Ministros estão previstas inúmeras acções de formação e de sensibilização, dirigidas a ciganos e a não-ciganos e, em particular, às forças de segurança e aos técnicos dos serviços de acção social e de promoção do emprego que lidam directamente com aquelas comunidades. Olga Mariano e Pinto Nunes, no entanto, consideram que nada será suficiente para quebrar aquilo que no documento aprovado pelo Conselho de Ministros é designado por "sentimento de desconfiança mútua" e a que o presidente da Fecalp chama "ódio".
"Sabe o que é um cigano? Não? Eu aprendi muito novo, p"ra aí com uns 14 anos, porque sempre fui muito curioso. Bastou-me consultar um dicionário de português", comenta, irónico, António, que não quer expor a identificação completa. Uma pesquisa rápida na Internet mostra de que fala este cigano orgulhoso, de 31 anos. Significados de "cigano" no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa: "[Informal] que ou aquele que leva vida errante (...); [Pejorativo] que ou quem age com astúcia para enganar ou burlar alguém = BURLÃO, IMPOSTOR, TRAPACEIRO, VELHACO." "Se alguém lhe chamar cigana, como é que reage?", atira António.
"Ponham-se na nossa pele"
Depois de Olga Mariano e de Pinto Nunes, é António que pede aos não-ciganos que se ponham na pele e na carne dos ciganos. Segue-se Gabriela, de pele e olhos claros, que várias vezes escondeu a etnia a que pertence, trocando as roupas de que gosta por outras, mais discretas, para conseguir empregos temporários; depois Bruno, que só viu a casa que ia arrendar depois de o contrato ser feito por terceiros, para não assustar mais um senhorio e conseguir, finalmente, um tecto; e por fim Paula, que foi rejeitada pela família por manter as filhas adolescentes a estudar, e também pelos vizinhos não ciganos, que no novo bairro, onde se refugiou, a receberam fechando portas e janelas por causa dos roubos.
"Às vezes sentimo-nos tão cansados, tão cansados. Mesmo eu, que tenho idade, experiência, segurança, tenho tantas vezes de contar até dez para não explodir...", conta Olga Mariano. Pinto Nunes e Francisco Monteiro são mais directos. "Muitos dos que dizem "Retire-se o rendimento social de inserção aos ciganos, que não querem trabalhar" são os mesmos que lhes negam emprego por serem ciganos", diz o presidente da ONPC. "Somos o que a sociedade permite que sejamos. Há quem se torne agressivo por instinto de autodefesa, há quem roube porque não tem outra maneira de obter meios de sustento", acrescenta o dirigente da Fecalp. "E se acontecer? Se alguém de apelido Sousa roubar, estabelecemos que todos os Sousas roubam?", acrescenta Francisco Monteiro.
"Ciganofobia generalizada"
O antropólogo Gabriel Pereira Bastos é uma das pessoas que mais veementes têm sido na denúncia da "ciganofobia generalizada" dos portugueses. Numa obra em que estão compilados os resultados de dez investigações relacionadas com as comunidades ciganas, lançada no fim do ano passado, o também professor da Universidade Nova de Lisboa incluiu uma reflexão sobre alguns dos sentimentos associados à expressão "ciganos em Portugal", quando pesquisada na Internet. Disse ter detectado uma "pulsão genocida e homicida" na quase totalidade dos comentários. "É um verdadeiro napalm, é racismo em estado puro", descreveu, na altura.
Esta semana, o antropólogo republicou um texto em que acusa o Governo e as instituições que participaram no desenho da ENICC de perpetuarem a situação. Diz que se trata de "um texto intelectualmente desonesto, subtilmente ciganófobo e ofensivo para os portugueses ciganos (...). Trata-os de forma tutelar, burocratizada e securitária, sem prever até 2020 a promoção de órgãos representativos e descentralizados, com função consultiva e participante, como seja um Conselho Consultivo dos Portugueses Ciganos, com representação nas cinco regiões-plano e nos municípios com maior concentração étnica", critica.
Em declarações ao PÚBLICO, o investigador manteve a posição, mas admitiu que os elementos da comunidade cigana têm dificuldade em organizar-se em associações e em conciliar posições. Bruno Gonçalves reagiu concordando, e dizendo que as diferenças resultam de um maior ou menor conservadorismo de uns e de outros. Olga Mariano pensa que a culpa é da iliteracia da maior parte dos elementos da comunidade e da consequente dificuldade em lidar com as burocracias e a papelada exigidas por qualquer organização; Pinto Nunes referiu-se ao espírito de clã para explicar algum isolamento. Mas não é difícil encontrar divergências entre os três aparentemente não relacionadas com qualquer daqueles factores.
Os três concordam com a necessidade, sublinhada na ENICC, de assegurar que as crianças e jovens cumpram a escolaridade obrigatória, com destaque para as meninas, que, segundo a tradição, devem ser retiradas da escola quando chegam à puberdade. Olga Mariano e Bruno Gonçalves pensam que isso pode ser conseguido com a generalização das figuras dos mediadores, ciganas e ciganos adultos, nas escolas; Pinto Nunes preferia "uma mudança mais lenta" mas, acredita, "mais eficaz", assente na criação de escolas públicas só para raparigas, ciganas e não ciganas.
Preocupam-se, os três dirigentes, com as dificuldades dos ciganos em aceder ao emprego. Bruno Gonçalves gostava que o Governo apostasse na discriminação positiva e na oferta de isenções fiscais às empresas que aceitassem integrar ciganos nos seus quadros. Pinto Nunes nem quer ouvir falar de tal coisa - considera a proposta "um insulto", por ser adequada a pessoas doentes ou deficientes e nunca àquelas que, sendo ciganas, "têm a mesma ou até mais capacidade de trabalho que as outras".
Concordam os três, e também Sandra Araújo, Francisco Monteiro e Pereira Bastos, que a prioridade das prioridades é tirar das barracas quem nelas vive, ainda. Todos consideram que já só são nómadas aqueles que, enxotados pelas forças de segurança, fogem de um para outro concelho. O director da Pastoral Cigana e Bruno Gonçalves apoiam projectos como o de Coimbra, onde quem sai das barracas é convidado a fazer um período de estágio num parque habitacional preparado para o efeito, onde recebe apoio social, antes de ser integrado noutra habitação, situada na malha urbana. Já o antropólogo considera tal coisa "horrível e chocante", à semelhança do presidente da Fecalp, que a julga também "degradante", e convida "a sociedade maioritária" a reservar o estágio "para os seus".
Estão de acordo, os seis, num aspecto: sete anos é pouco tempo.