10.5.23

É uma escola? É um museu? É a Universidade de Coimbra, património Mundial da UNESCO

Marina Almeida e José Fernandes, in Expresso


A cumprir uma década de classificação da UNESCO, a Universidade de Coimbra enfrenta o desafio de harmonizar o turismo com o património. Viagem pelos espaços da instituição, que este ano caminha para o número de visitantes pré-pandemia


As finalistas de direito trajados a rigor alinham-se na imponente escadaria do Paço das Escolas, epicentro da Universidade de Coimbra. Têm o fotógrafo oficial a postos e ensaiam o atirar das capas pretas ao ar, em simultâneo, gesto que ficará para a posteridade na fotografia de fim de curso. Neste compasso de espera, chega um grupo de turistas norte-americanos. Erguem os telemóveis, mirando os estudantes pelo ecrã, alargando a equipa de fotógrafos daquele momento da vida académica. Um dos finalistas exibe uma folha A4, providencialmente escrita e guardada na pasta: “foto 2 euro”. Os turistas hesitam por uns segundos, mas a guia diz-lhes pelos intercomunicadores que todos têm no ouvido que é brincadeira, podem tirar fotos.

A vida na universidade mais antiga do país é feita destes momentos: os estudantes na sua vida, os turistas atrás das vidas deles, a caminho da Biblioteca Joanina ou do Palácio Real. Em 2022 foram perto de 313 mil os visitantes que aqui passaram. A classificação da Universidade de Coimbra, Alta e Sofia, como património Mundial pela UNESCO há uma década, trouxe mais visibilidade a este conjunto histórico-cultural, tendo sido 2017 o ano recorde, com mais de meio milhão de turistas. Este ano há a expetativa de se bater este número. Em abril visitaram a UC mais de 32 mil pessoas.

“Somos uma universidade há 700 anos e queremos continuar a ser. É um desafio muito grande do ponto vista do património”, admite o vice-reitor para o Património, Edificado e Turismo, Alfredo Dias. Dos 32 edifícios classificados, 22 são da universidade (nem todos são visitáveis). “Este complexo do Paço das Escolas era Monumento Nacional, já havia obrigação de preservar. Com a classificação [da UNESCO] veio uma maior visibilidade e responsabilidade na conservação. Atrai mais gente, o que às vezes tem inconvenientes”, refere. Por isso, há restrições ao número de visitas por hora, só podendo cada grupo ter 45 pessoas a cada 20 minutos (135 visitantes por hora).

Estamos à porta da Biblioteca Joanina, habituando os olhos de novo à luz do dia com as badaladas persistentes do sino da Torre da Universidade a marcarem as seis da tarde. Uma tradição antiga, das muitas que se mantêm por aqui, que assinalava o fim do dia de aulas. Hoje assinala também o fim do horario de visita (nos meses de julho e agosto, há visitas até às 19.00). O exterior da biblioteca está em obras, há um processo constante de conservação, que os bilhetes dos turistas ajudam a financiar (há vários preços, sendo o pacote mais caro de €17,50). Lá dentro, a visita faz-se de nariz no ar, olhando as paredes de livros com que se ergue esta imponente catedral de luz e sombra. São cerca de 60 mil livros (ainda não estão todos catalogados) escritos entre 1500 e 1700, a maior parte em latim. Todos podem ser consultados, mediante autorização especial. Deverão, em breve, começar a ser digitalizados.

“Temos um bem classificado que é a universidade e continuará a ser universidade num mundo competitivo”, diz Alfredo Dias, respondendo à questão se a classificação não poderá travar a adaptação da universidade a desafios contemporâneos. “Queremos ter em cada espaço o que melhor se adapta”, dando como exemplo a aula de História de Arte que acontecera na Joanina. Esta zona, classificada, é o polo I da universidade. As engenharias estão no polo II e as ciências da saúde no polo III, em zonas mais periféricas da cidade.

J.K. Rowling passou por aqui?

No Paço das Escolas, as capas pretas cruzam o terreiro, seja sob o sol escaldante, seja com ameaça de chuva. E alguns guias turísticos que aproveitam a passagem dos estudantes trajados para ir contando a história da capa e batina. Alguns vão mais longe, associando o traje académico e a Biblioteca Joanina ao universo Harry Potter. “Foi aqui que J.K. Rowling se inspirou…” Dias antes escutáramos algo semelhante em frente à montra da loja mais antiga de trajes académicos, A Toga.

Realidade ou ficção, a verdade é que nos espaços da universidade se fazem várias viagens no tempo. Na Capela de São Miguel, do século XVI, dominada por um desproporcionado órgão barroco de mais de dois mil tubos, que jamais pode tocar na sua potência máxima (ou, no mínimo, partiria os vidros todos); No Palácio Real, onde viviam reis (entre os quais D. Afonso Henriques) e príncipes, e que hoje percorremos, de sala em sala, imaginando usos passados para estes espaços de visita (com bandas sonoras de guias turísticos em sobreposição); Na Sala dos Capelos, onde se celebram os doutoramentos honoris causa, foi a sala do trono onde se fez a História de Portugal (D. João I foi ali aclamado). Mas também nas faculdades de Letras, Matemática (com frescos de Almada Negreiros no átrio) e na Biblioteca Geral, edificadas durante o Estado Novo.

Percorremos alguns destes lugares com Filipe Freitas, um dos guias da universidade. No museu Éfe-Érre-Á, contam-se histórias com objetos doados pela comunidade académica: as repúblicas, os troféus da Académica, os símbolos da academia – o penico, a capa e batina, a borla e o capelo –, o carro vencedor da Queima das Fitas do ano passado, o fado. No Gabinete de Curiosidades, recria-se os espaços que surgiram no século XVI e estiveram na génese dos atuais museus. Eram salas cultivadas por nobres, artistas e comerciantes endinheirados, que gostavam de impressionar as visitas com objetos exóticos e bizarros. Ali está um bezerro com oito patas, vários frascos com fetos, o esqueleto de uma vaca, um crocodilo, escaravelhos que parecem joias. São milhares de objetos, que representam cerca de 20% do acervo do museu da universidade, provenientes de várias coleções. A ideia é que o visitante vá descobrindo aqueles objetos, fazendo cada um a sua viagem. A exposição não está catalogada nem organizada, como se fazia nos gabinetes de curiosidades originais. Aqui não há espaços em branco e tudo concorre para o olhar, para a atenção. E para alimentar a curiosidade.

"– O que é aquilo suspenso no teto?

– É um palanquim.

– Transportava o dono do gabinete de curiosidades?

– Isso mesmo. Este é do século XVIII, foi usado nas famosas viagens filosóficas.

– Bem me parecia."