8.9.23

POR FAVOR, DEEM QUALQUER COISINHA

Clara Ferreira Alves, in Expresso


PORTUGAL É COMO UM POBRE ELEFANTE QUE FOI RETIRADO DO SEU HABITAT E DOMESTICADO, POSTO A RENDER PARA O TURISMO

António Costa escreveu uma carta “à Europa” a pedir ajuda para o problema da habitação. Talvez por uma questão de protocolo e de não deixar uma carta de primeiro-ministro sem resposta, “a Europa” reconheceu o problema, “transversal” a toda a Europa segundo a carta, e prometeu estudar o assunto. Com educação e verniz, como compete “à Europa”.

Esta carta é um atestado de fracasso. Décadas de políticas erradas, desajustadas e vinculadas ao curto prazo e mais ainda ao prazo eleitoral, aliadas a uma desqualificação do pessoal político para pensar sem papaguear a linha oficial do partido e da propaganda e a hábitos de preguiça e de desperdício de fundos e de dinheiro, conduziram o país a este estado. Não existe, nem agora nem no futuro, um modo de resolver o problema, porque não existe uma visão do problema. O problema entremeia-se com outros dois, o dos salários mínimos com um sistema tributário máximo, o supercondutor do empobrecimento dos portugueses que não trabalham em sectores rentáveis como o turismo, e o dos jovens desempregados ou com um salário mínimo que não terão hipóteses de pagar uma casa, qualquer casa, renda ou propriedade, num futuro utópico.

Nos anos em que fundos europeus escorreram da cornucópia europeia para Portugal e enriqueceram tantas clientelas e quadros dos partidos mais as respetivas empresas familiares, todos conhecemos as histórias que acabaram no Ministério Público e muitas outras ficaram escondidas, nunca sobrou pecúnia para construir, pelo menos, residências universitárias. Um campus universitário para a capital. Ninguém pensou nisso? O antigo regime, sim, Salazar, mandou construir o bairro dos Olivais, Encarnação e Olivais Norte, um projeto que hoje está em estado de degradação física se olharmos para os edifícios mais baratos, para acudir às chamadas carências habitacionais dos desfavorecidos. Construção social numa escala moderna. A seguir, Olivais Sul. Com o aeroporto ao lado. O projeto mobilizou arquitetos e urbanistas, quadros técnicos competentes empenhados em construir numa escala humana, com zonas verdes e acessos a transportes, para que as populações não fossem alojadas em guetos com o pretexto da renda acessível. Os Olivais foram um êxito de planeamento e construção.

Alguém se lembra, nestes anos de democracia, de um projeto habitacional com escala semelhante destinado a habitação “social”? O termo ganhou conotações de gueto de imigrantes e miseráveis, e subculturas criminosas, muitos deles desalojados por construções de luxo no centro da cidade, e ninguém quer morar num dos velhos bairros sociais, onde também não há casas. Os bairros sociais do tempo do salazarismo, justamente.

António Costa foi presidente da Câmara de Lisboa durante anos, deixando lá o herdeiro, e nunca se preocupou com o problema, que decerto conhecia e reconhecia. Quando uma capital onde se concentra a maioria dos empregos públicos e privados e dos serviços desiste de pensar na habitação dos cidadãos e pensa apenas em turismo e investimento estrangeiro em património imobiliário, muito dele especulativo, está a cavar a sepultura. O Estado considerou que o único modo de reabilitar Lisboa era vendê-la e arrendá-la a estrangeiros e atrair os turistas. Ao contrário de grandes cidades, o caldo urbano lisboeta não absorve a massa turística sem danos irreversíveis. Por cada hotel é um conjunto de casas que acaba. Tanto mais que Lisboa escolheu um modelo de desenvolvimento terceiro-mundista, com aposta forte no retalho dos centros comerciais e supermercados dentro da cidade, que destroem o comércio de rua, e nos condomínios privados, que destroem a vida comunitária e são guetos de ricos ou, agora, de estrangeiros ricos.

Confundir isto com cosmopolitismo foi o que se fez. Não passa de uma visão provinciana e imediatista, especulativa, do que deve ser a cidade. A gentrificação não foi o problema, a entrega do património habitacional disponível a forças do mercado com intenções meramente especulativas ou transitórias é, com a deficiente ou inexistente construção de preço médio, o problema. O problema das rendas é o da escassez de casas e terrenos e o pacote Mais Habitação não o resolve, antes agrava. Arrendar para congelar? Não, obrigados.

Veja-se como as pequenas e agradáveis lojas do Príncipe Real foram recentemente expulsas pelo proprietário, uma entidade chamada Eastbanc. A entidade não está interessada em pequeno comércio, um dos encantos da zona, mas em condomínios de luxo. A vida da cidade não lhe diz respeito, evidentemente. Quando se vende uma cidade com escassez de espaço e de construção a estrangeiros e seus agentes portugueses, os intermediários nacionais que têm enriquecido à custa da falácia e da falência política e social, e são muitos, não se pode pretender que seja “a Europa” a resolver o problema.

O problema pode ser transversal a outras cidades e capitais, mas o problema português é específico e mais agudo porque a deficiente visão política o gerou e não apenas os desequilíbrios do mercado. Madrid não teve o mesmo problema. E Paris construiu, muito, mas o brutal afluxo de imigrantes das ex-colónias gerou guetos políticos e polos de descontentamento e protesto, mais por razões políticas e sociais do que por deficiência da habitação económica. Muita habitação social foi um êxito, e basta comparar os subúrbios de Paris, tão mal-afamados, com os de Lisboa, uma súmula de horrores urbanísticos nas mãos de construtores civis e de labregos à solta, doadores de dinheiro para os partidos e autarcas e para os clubes de futebol. Quando o terreno lhes começou a faltar aqui rumaram para Angola, Luanda, onde continuaram a depredação.

O que resta hoje é uma população irada, já ultrapassámos o descontentamento, e uma emigração de jovens qualificados, aquilo que o primeiro-ministro chama, com cinismo, só pode ser cinismo, a geração mais qualificada de sempre. Acresce a este nó de problemas e angústias o problema dos transportes, onde o privilégio pelo transporte individual e nacionalizações improdutivas e imprudentes sem retorno, a CP é um caso exemplar, geraram poluição sem fim, um ar irrespirável, horas perdidas no trânsito e uma rede de transportes públicos irracional. Até a linha de metro foi restrita e construída sem visão. A cidade não tem uma rede rápida como têm as capitais europeias. Ainda andamos a construir um metro, com fundos europeus, quando as cidades já avançam para novos e soluções de mobilidade.

O desprezo do PS pelos problemas é visível no modo como um quadro político ao qual nunca se ouviu uma palavra sobre Lisboa é empurrado para a candidatura à Câmara. A ex-ministra da Saúde. A Câmara é um emprego político, não é um posto qualificado. Isto faz sentido em 2023? A desqualificação do pessoal político é tal que já ninguém repara. É a zona do tanto faz.

Na disfunção, a Europa surge como a mãe de todas as soluções. A Europa prepara um alargamento a leste que poderá decretar a sua ruína se correr mal, e tem tudo para correr mal, mas os portugueses são instruídos para considerarem as eleições europeias uma medição de forças entre o PS e o PSD. Deveria ser uma discussão adulta e culta sobre o alargamento e o que significa para Portugal, menos fundos, mais contribuição, menos ou nenhum peso político nas decisões do bloco se o projeto da maioria que a França e a Alemanha preparam for aprovado. A cornucópia vai deixar de pingar. Investir no leste da Europa será a prioridade. E que faremos, paralisados e anestesiados como estamos, entregues a atores políticos dependentes e incompetentes? As europeias não são um combate entre Montenegro e Costa, duas variáveis insignificantes no quadro estratégico europeu.

Até lá, viciado em pedir esmola e pedir dinheiro, Portugal está como aqueles pobres elefantes que foram retirados do seu habitat e domesticados, postos a render para o turismo. Não podem ser devolvidos à natureza porque perderam a capacidade de procurar alimento para sobreviverem. Portugal perdeu, durante anos de fundos, a capacidade e iniciativa necessárias para resolver os próprios problemas. E vai pedindo ajuda.