Ana Cristina Pereira, in Diário de Notícias Madeira
Vou dormir com a minha utopia. Não é sexy, eu sei, mas aconchega-me nesta noite fria de Bruxelas.
Nada que ver com Thomas More, que inventou essa palavra e, com ela, um mundo inteirinho num livro que só li, já grande, na Universidade do Minho. Não-lugar, lugar nenhum, lugar idealizado – em qualquer caso inconformismo, em qualquer caso esperança.
Agora que penso bem nisto, percebo que esse nem foi o meu primeiro contacto com o conceito. Afinal, lera a República, de Platão, na Escola Secundária de Francisco Franco, e o catecismo nos bancos da Igreja de Nossa Senhora da Saúde, nos tempos em que, vista ao longe, mais parecia um armazém de guardar vimes.
Enfim, estou a perder-me. Dizia-vos que vou dormir com a minha utopia. Cada um há-de ter a sua, não é?
A minha utopia está escancarada numa T-shirt que um rapaz me deu esta tarde no The Egg. Diz assim: “A pobreza não é inevitável e pode ser erradicada na União Europeia e no planeta. Nós queremos uma Europa social livre de pobreza, exclusão social e iniquidade.”
Não me venham com a crise, como se essa palavra bastasse para aniquilar qualquer ventura. Deviam ter ouvido o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso, esta tarde.
O homem que para nós há-de sempre chamar-se Durão Barroso acha que ainda podemos não só retomar os níveis de pobreza e de exclusão social que tínhamos em 2008, ano em que a coisa estourou nos EUA e veio por aí fora, como retirar 20 milhões dessa situação até 2020, como nos propusemos em 2010. “Eu acredito que podemos fazê-lo. Nós podemos fazê-lo inspirados nos nossos valores. O valor da solidariedade está no coração do modelo europeu”, disse ele.
Há amplo consenso sobre o que deve ser feito rumo a uma sociedade para todos. Uma criatura senta-se a ouvir Durão Barroso, Herman Van Rompuy, presidente do Conselho da Europa, László Andor, comissário do Emprego, dos Assuntos Sociais e da Inclusão, e outras figuras e até se espanta com a amplitude do consenso: falam todos na necessidade de solidariedade entre cidadãos, entre regiões, entre Estados-membros. Depois de ouvi-los assim, de seguida, ainda é mais difícil perceber o que falta para passar à prática, dizia Sérgio Aires, presidente da European Anti Poverty Network (EAPN), traduzível por Rede Europeia Antipobreza.
Vou dormir com a T-shirt branca que me deu o rapaz da EAPN. Não é sexy, eu sei, mas aconchega-me nesta noite fria de Bruxelas. Nas costas está escrito: “É tempo de ouvir e agir!”