4.2.14

Helena Matos. "Os jovens podem chegar à reforma numa pobreza que já não devia existir"

Por Luís Rosa e Pedro Rainho, in iOnline

Investigadora diz que os jovens que já descontam terão reformas "ridículas" caso as regras da Segurança Social não sejam alteradas

Abordar o tema da Segurança Social na perspectiva das gerações mais novas não é muito comum. Fazê-lo ao mesmo tempo que se critica as condições privilegiadas em que muitos dos actuais pensionistas se reformaram é ir contra a corrente do pensamento mediático presente. Foi isso que Helena Matos, em conjunto com José Manuel Fernandes (ex-director do Público), fez na obra "Este país não é para jovens" (ed. esfera dos livros), confrontando os direitos adquiridos dos mais velhos com a precariedade e falta de perspectivas económicas dos quinhento euristas. A leitura da obra assemelha-se ao choque que, segundo Matos, os portugueses sentiram com o pedido de ajuda externa feito em 2011 por José Sócrates. "Aquilo marca o momento em que a realidade nos bateu na cara." Um momento que obriga à reacção dos mais novos.

Existe o risco de uma guerra de gerações ao garantirem-se os direitos dos mais velhos sem acautelar os dos mais novos?

Guerra de gerações, de modo algum. O que vai acontecer é uma constatação a posteriori com muita amargura. As pessoas que hoje têm 30, 35 anos, às vezes até 45, dizem que já não vão ter pensões. É uma ideia que quase se banalizou. Mas só o dizem porque são novos. Quando somos novos temos uma visão quase infinita da vida. Há-de acontecer tudo daqui a muito tempo, não temos noção de que chegaremos a um tempo da vida mais frágeis.

As gerações mais novas deviam ser mais exigentes em relação ao seu futuro?

Claro. Eu nasci em 61 e já não apanhei muito isso, mas sobretudo nos anos 80 começa a falar-se muito da juventude. E isto traduz-se nas políticas dos governos, até mais a seguir ao 25 de Abril, com o cartão jovem, o instituto da juventude, as pousadas da juventude. Há todo um merchandising político e real em torno da juventude mas, a partir do momento em que as políticas mandam o pagamento de muitas facturas para o futuro, os interesses dos jovens têm de ser acautelados.

O discurso dessas pessoas não vai ser o mesmo daqui a algumas décadas?

Quando começarem a perceber que estão mais velhas e numa situação de desprotecção, já não poderão fazer guerras com quem não está cá.

Dizem no livro que o Estado "infantilizou a sociedade" e criou "desigualdades gritantes em nome de um utópico igualitarismo". O que contribuiu para isso?

Os portugueses tinham taxas assinaláveis de poupança. A partir do momento em que o Estado toma conta de nós, as pessoas vão-se desresponsabilizando. Temos de encontrar aqui reequilíbrios saudáveis, não podemos deixar as pessoas completamente entregues à sua capacidade de poupança, até porque esta população jovem que está a contribuir para a Segurança Social não tem capacidade de fazer poupança. Levou com uma crise económica em cima, e aquilo que descontam para a Segurança Social e que pagam de impostos não lhes permite estar a fazer poupanças. É a armadilha perfeita. Nas revoluções marxistas falava-se de uma geração sacrificada.

É o que temos nesta faixa dos 30/40?

É uma geração que já não usufrui do muito interessante, muito confortável e também muito colonizador Estado social que tivemos e que deixámos de ser capazes de sustentar.

E terá essa geração consciência do seu futuro?

Creio que não. Dizem com toda a tranquilidade que já não vão ter reformas, numa altura em que a produtividade baixa, que as despesas aumentam, mas arriscam-se a chegar a essa idade com parâmetros de pobreza que já existiram em Portugal e que não deveriam voltar a existir.

Temos um sistema de transferência em que os trabalhadores no activo pagam as pensões dos reformados. Mas muitos portugueses pensam que o dinheiro que descontam vai para uma conta imaginária da Segurança Social.

Exacto. Essa conta não existe. Haveria mais transparência nesta matéria se as pessoas percebessem, apesar de o dinheiro não estar guardado em lado nenhum, quanto descontaram. Um dos grandes equívocos que seria importante desmanchar é o de que, mesmo que o dinheiro descontado estivesse lá - e sabemos que não está -, dificilmente chegaria para assegurar aquele valor de pensão com a nossa actual expectativa de vida. Já nem falamos na função pública e nos casos em que as pessoas se reformaram com o vencimento do último ano.

O equívoco nasce logo com o aparecimento do Estado social?

O Estado social surge com Marcello Caetano, numa época em que a economia portuguesa crescia a dois dígitos e a pirâmide [demográfica] era completamente inversa da actual, e havia uma necessidade imensa de fixar mão--de-obra em Portugal. Surge neste contexto e com a ideia de que o governo é magnânimo e dá. A seguir ao 25 de Abril, todo o discurso é composto com base na ideia de que, sendo democráticos e muito melhores, vamos dar mais. As pessoas nunca fizeram qualquer correspondência entre a riqueza gerada e aquilo de que se usufrui. Sempre se interpretou isto como um acto de bondade, de quem está nos governos, de inscrever ou não determinados montantes no Diário do Governo e, depois, da República. Isto tem de chegar a um nível de realismo, tem de se incorporar nesta discussão os diferentes interesses, os de quem está a receber e os de quem está a contribuir e vai receber mais tarde.

É factual dizer-se, como muitos pensionistas fazem, que ao cortar pensões o Estado está a "roubar" dinheiro que eles descontaram?

O Estado não está a roubar, até porque tem de fazer transferências do Orçamento do Estado para pagar pensões. Muitas pensões não correspondem aos montantes que foram descontados. Nas democracias, quem dá, quem rouba e quem tira é sempre o mesmo: o contribuinte. Se perguntar a quem diz que está a ser roubado se está disposto a pagar mais impostos, vai ouvir uma resposta negativa.

E o que fica como alternativa?

Na minha opinião, ou reformamos a Segurança Social, ou só existem mais duas vias: aumentarmos completamente o endividamento do país, pedindo mais empréstimos para financiar a Segurança Social, o que não é viável, ou falsificamos dinheiro. Esta última via tem sido experimentada por alguns governos ao longo dos tempos com resultados invariavelmente desastrosos.

Mas é incontornável que os actuais pensionistas tenham gerado expectativas em função de um valor que não é o actual.

Os nossos dirigentes políticos, e aí os nossos jovens terão de ter uma voz, deverão dizer que este sistema de equilíbrio tem um outro parceiro. São os jovens que estão a chegar, que já estão a contribuir e cujo contributo tem de ser tido em conta. Sempre que se discutem as reformas, nunca se fala da taxa de substituição (percentagem do valor da pensão em relação ao salário com base no qual se calcula a pensão) dos próximos anos, que vai fazer estes cortes parecer uma coisa infantil. O que já está previsto para as reformas daqui a 30 ou 40 anos é um valor muitíssimo baixo. Isto é, os jovens de hoje vão receber muito menos do que os actuais pensionistas.

O discurso político sobre esta matéria foi sempre marcado por preocupações eleitoralistas?

Completamente. Há um caso dramático, numa tentativa de reforma mais séria da Segurança Social, no primeiro governo de António Guterres. É absolutamente extraordinário o que acontece. Eles começam a reunir e em todas as épocas temos os nossos fantasmas. A comunicação social divide os elementos daquela comissão entre pessoas muito boazinhas e pessoas muito más. As primeiras eram as que diziam que o sistema não precisava de ser mudado e que havia uma grande dívida do Estado à Segurança Social porque no passado tinham sido alargadas pensões a pessoas que nunca tinham descontado.

Houve, logo aí, marcadas divergências.

Houve uma divergência enorme sobre a forma de calcular aquela dívida entre o presidente da comissão, Correia de Campos, e o professor Boaventura de Sousa Santos, que fazia parte do chamado grupo dos críticos. Mas tivesse aquela a dimensão que tivesse, o dinheiro para a pagar implicava o lançamento de um imposto especial, dada a sua dimensão, que teria de sair do bolso dos portugueses. E resolveria momentaneamente o problema. Desde Marcello Caetano, o discurso é o de que as pessoas têm os direitos em abstracto, sem que esses direitos tivessem correspondência com a riqueza.

De que forma se tornava evidente que o voto dos eleitores falava mais alto?

Como existe a tal conta imaginária, os melhores políticos são aqueles que dão mais ou que alimentam mesmo ilusões em relação ao que sabem que não está lá. Maior transparência traria também mais racionalidade política a um assunto que precisa mesmo dela. Não é possível manter-se esta discussão do roubo.

O optimismo continuou pelos governos de Durão Barroso, até aos governos de José Sócrates.

E há aqui um problema naquilo que chamamos de parceiros na concertação social. Pensemos nos sindicatos. São muito activos na defesa dos direitos de quem está e esquecem a outra parte. Todos nos confrontámos com colegas mais velhos, repletos de direitos adquiridos, e ao lado uma multidão de estagiários desprotegidos.

Têm faltado protagonistas políticos com capacidade para tomar decisões sobre o futuro da Segurança Social?

A questão, e pensando nas eleições presidenciais de 2006, é que todas aquelas pessoas, à excepção de Manuel Alegre, tinham noção de que, quando Teixeira dos Santos alertou para a insustentabilidade da Segurança Social no programa "Prós e Contras", a forma como abordassem aquele assunto podia comprometer absolutamente a sua eleição.

Em 2006, Teixeira dos Santos lança o alerta na televisão sobre a insustentabilidade da Segurança Social. Mas já o governo socialista de 2002 ou o de Sócrates têm sempre previsões de crescimento acumulado na ordem dos 30%.

Esse é o lado mais perturbante que encontramos na Segurança Social. O diagnóstico da situação presente está sempre muito bem feito. E depois temos uma parte que choca pela irrealidade. Muitas vezes, esses relatórios constatam fracos desempenhos económicos naqueles anos, mas imediatamente duas linhas abaixo afiançam que daí a dois anos vamos estar com um grande crescimento económico que vai ser sempre maior conforme o passar dos anos. E também que os nascimentos vão aumentar.

Falta-lhes fundamentação rigorosa?

Completamente. É como se tivessem sido preenchidos por nós num daqueles momentos em que formulamos desejos para o futuro. A irrealidade é tal, e em alguns casos desmentida pelos censos, que é como se fôssemos nós a preenchê-los. Isto merece uma muito maior discussão. Não podemos continuar a deixar nas mãos de previsões tão irrealistas a sustentabilidade de um sistema do qual dependem milhões de portugueses.

Foi deliberado esse erro?

Não há pior cego que o que não quer ver. A geração dos anos 60 deixou um legado terrível aos seus jovens: a decisão de travar uma guerra em três cenários no ultramar português. A forma como se pode estar a comprometer o futuro das próximas gerações assemelha-se muito à impossibilidade que existiu, em Portugal, de discutir o Ultramar. Havia a sensação de que, se se discutisse o tema, a situação se desmoronava.

A solução foi empurrar o problema para a frente?

Quando não se pretende discutir um assunto que atravessa todas as classes, não se consegue empurrar com a barriga, consegue-se ir agigantando o seu dramatismo.

Há outro prato na balança, a questão da natalidade. Em algum momento houve uma verdadeira política de natalidade em Portugal?

A opção de ter ou não ter filhos tem muitos factores além dos incentivos. O que os governos podem fazer é descomplicar. As pessoas confrontam-se com os horários de onde podem deixar os filhos, o mercado do arrendamento também não ajudou, a legislação laboral, em que o part-time é uma coisa muito exótica. Eu tenho quatro filhos, mas além de ter trabalhado sempre quis dar a entender que o facto de ter filhos não prejudicava a minha prestação laboral.

Que soluções de curto prazo existem para resolver a insustentabilidade da Segurança Social?

Tudo o que traga transparência ao sistema ajudaria um pouco a perceber que dinheiro estaria na tal conta imaginária. E temos de ser capazes de criar um regime de transição que faça com que duas gerações não fiquem condenadas à pobreza extrema na velhice. Esse regime nunca será perfeito nem justo, mas não podemos passar de uma fase em que as pessoas recebem mais do que deram para outra fase em que recebem uma insignificância face àquilo que contribuíram. E acho que este assunto é demasiado sério para ser confiado unicamente a uma entidade. Os sistemas mistos, uma parte no sistema público e outra no privado, parecem-me ser importantes, devendo as pessoas ser livres de escolher o caminho que querem.

O plafonamento tem o problema de agravar as contas da Segurança Social. Parece-lhe exequível esse caminho?

Essa é a questão do regime de transição. Se esse pode ser o regime do futuro, a habilidade está na transição. Temos de conseguir fazer isso sem descapitalizar o sistema que já está descapitalizado. Na apresentação do livro, o professor Álvaro Santos Pereira falou na necessidade de um pacto de regime sobre esta matéria. Tendo em conta algumas das decisões que terão de ser tomadas e que implicarão transferências do OE, creio que os acordos fazem sentido, e se há matéria em que eles façam sentido para garantir uma política de continuidade é esta. O sistema que temos é um óptimo cenário para o populismo político.

Um novo aumento da idade da reforma teria de fazer parte desse pacto de regime?

O sistema tem de ser dinâmico. Criámos, no final dos anos 60, um sistema que garantia valores rígidos, partindo do pressuposto de que se manteria o crescimento económico e a natalidade. O sistema, para sobreviver, tem de ser flexível. Porque, se não o é, um dia estoura. Não podemos ter uma discussão política profunda de cada vez que temos de adaptar-nos à realidade.

O governo deu um primeiro passo na reforma do sistema, com a convergência das pensões, que acabou chumbada pelo Tribunal Constitucional (TC). Isso é um sinal de que a mudança profunda implica uma revisão da Constituição?

A revisão da Constituição faz sentido em relação a outras matérias. Não percebo porque temos de ser um país a caminho do socialismo mesmo quando não votamos no Partido Socialista - que nem está próximo daquele socialismo. A Constituição tem questões muito datadas e a sua revisão faz sentido, até politicamente falando. Em relação à Segurança Social, penso que o TC tem uma perspectiva claramente geracional da sociedade portuguesa. Lendo aqueles textos, percebe-se uma preocupação muito grande com os mais velhos, com as projecções que as pessoas fizeram para aquela fase da sua vida. Mas não se encontram praticamente referências aos mais novos.

Esses jovens não estão constitucionalmente protegidos?

Estão, mas lendo os textos do TC percebe-se que este grupo não está lá. É como se todos fizéssemos um negócio, mas um dos elementos (que também paga) não tem os seus interesses representados. Esse é sempre um mau negócio. Nota- -se em muitas daquelas observações, como em boa parte da nossa elite política, que eles nunca souberam o que era não receber o ordenado ao fim do mês. Isto é uma constatação. Não têm a percepção de que há outro mundo em que o dinheiro não cai sempre na conta no fim do mês. Temos uma perspectiva muito marcada geracionalmente e também pela sua própria experiência laboral de função pública.

Os sindicatos argumentam que o défice de 4 mil milhões foi criado pelo Estado e também que o Estado devia pagar uma contribuição à CGA como as empresas pagam à Segurança Social. Estes dois argumentos podem ajudar a solucionar o buraco da CGA?

O sistema da CGA seria sempre deficitário. Nenhum sistema tem a sua sustentabilidade assegurada quando garante aos seus beneficiários um valor de substituição de pensões, que chegou a ser de 100%, calculado sobre o vencimento do último ano. Partindo do princípio de que eu tinha ganho 800 euros na minha vida profissional e que, no último ano, passei a ganhar mil, e se depois vou para casa com mil euros, e quando tudo indica que a minha expectativa de vida é de 20 anos, durante esses 20 anos, aquilo que vou receber nunca poderia ter sido coberto pelo que descontei ou pelo que o Estado não descontou por mim.

E sobre o valor que os sindicatos dizem estar em falta?

Só há uma maneira de resolver esse valor, que é lançando um imposto. Tem de se perguntar às pessoas - inclusive aos trabalhadores do sector privado - se estão dispostas a pagar mais um imposto para que se mantenham taxas de substituição muito elevadas.

É justo que os funcionários públicos sejam mais castigados que os trabalhadores do privado?

A sua situação era diferente. Alguém que estava mais beneficiado será sempre mais visado. Não tenho a certeza de que o regime dos funcionários públicos tenha de ser igual ao dos trabalhadores do sector privado. Mas adoptamos de cada regime aquilo que mais nos interessa, criando situações perversas. Veja-se a revolta dos polícias. A única manifestação que, de facto, assustou este governo foi a dos polícias. Vemos neste momento que se preparam condições para que as forças policiais tenham nos seus vencimentos e progressões um regime que não é o dos funcionários públicos. Presumo que assim se procure comprar alguma paz no sector. Mas, para todas as outras coisas, as forças policiais não querem deixar de ser funcionários públicos. Não abdicam do direito à greve nem do direito à corrida pelas escadarias da Assembleia da República. Temos de perceber que as pessoas não podem querer o melhor de três ou quatro regimes.

Este governo distingue-se de alguma forma dos anteriores?

Este governo foi obrigado pelas circunstâncias, penso que não pela sua vontade, a confrontar-se com a realidade. Há um dia marcante na nossa história, quando José Sócrates é obrigado a fazer o pedido de ajuda externa. Mais que o pedido de ajuda externa, aquilo marca o momento em que a realidade nos bateu na cara. Aquilo marcou o futuro político de José Sócrates, mas marcou vários governos que lhe vão suceder. O governo que suceder a este, que tem o primeiro embate, terá todos estes assuntos na sua agenda. Podemos iludir a realidade durante algum tempo, podemos empurrá-la. Já fizemos isso tudo. Agora, ela impôs-se.

O PS está preparado para fazer estas reformas?

O PS tem pessoas muito competentes nesta matéria. Algumas das iniciativas ligadas a esta matéria partiram do Partido Socialista. Mas o PS não é bem, neste momento, um partido. São várias correntes. O PS tem de resolver algumas questões internas. Desejo sobretudo que, se vencer as próximas eleições, não lhe suceda o que sucedeu com François Hollande, ter um discurso de campanha que depois foi obrigado pela realidade a mudar substancialmente. Porque isso retira aos países a confiança necessária para fazer uma reforma destas. Só se pode partir para uma reforma desta natureza, que não é indolor nem asséptica, com confiança.