in Jornal Público
É das práticas que mais arrepios provocam entre os membros de outras culturas, para quem a excisão genital feminina é vista como uma tradição inaceitável. Mas, para a tentar erradicar, há que compreender o seu significado e, no quadro dos valores e crenças que lhe estão subjacentes, encontrar alternativas que sejam aceites na comunidade.
Para o Fundo das Nações Unidas para a População (FNUP), este é um exemplo de como o respeito pela cultura dos outros é essencial para ter sucesso nas políticas de desenvolvimento. No seu último relatório sobre a situação da população mundial, ontem divulgado, dá-se conta de como no Quénia se começou a combater esta mutilação feita às meninas agindo a partir de dentro da cultura onde é praticada.
Vista como um rito de passagem entre a infância e a idade adulta, a "circuncisão" feminina é feita a meninas antes dos 14 anos e pretende que a rapariga fique mais "limpa" ou "purificada". As mulheres que não a fizerem são vistas como "sujas" e não podem tocar em alimentos ou água que sejam servidos a outros. Nalgumas sociedades, os órgãos femininos são vistos como grandes e feios e, segundo Ambe J. Njoh, autor de um livro sobre tradições africanas, acredita-se que se estes não forem extraídos crescerão a ponto de ficarem pendurados entre as pernas da mulher.
No Quénia, lê-se no relatório, um projecto comunitário feito em parceria com o FNUP, tem acumulado sucessos, continuando a respeitar a tradição como rito de passagem - o que passa por manter o período de reclusão e ensinamentos a que as meninas são sujeitas - mas substituindo a excisão por práticas alternativas sem danos para o corpo das raparigas.
Estratégias como esta são o ponto fundamental do relatório do FNUP deste ano. Dedicado à Cultura, Género e Direitos Humanos, o estudo salienta que é necessário respeitar as práticas de cada sociedade para conseguir algum sucesso nas estratégias para promover o desenvolvimento ou dar respostas humanitárias.
Mas este respeito, salienta o relatório, não implica a aceitação cega de práticas danosas para as pessoas - sobretudo no caso particular das mulheres -, nem de abusos dos direitos humanos. É que, defende o FNUP, apesar das particularidades de cada cultura, os direitos humanos são universais e indiscutíveis.
Este é o caminho, defende o FNUP, para se tentar atingir um dos objectivos do milénio que permanece ainda um fracasso: desde 1980 que o número de mulheres em todo o mundo que morrem por complicações na gravidez ou no parto permanece praticamente inalterado.
Na raiz deste e de outros problemas continua a discriminação a que as mulheres são sujeitas, muitas vezes justificada pelas suas próprias culturas. Ana Fernandes