14.6.13

Adeus brasileiro. "A gente pensa Portugal e Europa, uau! Depois cai na realidade"

Por Marta F. Reis, in iOnline

Alexandre viveu dez anos em Portugal e regressou esta semana a casa. Nunca conseguiu uma escola para a filha deficiente

Os últimos dias de Alexandre em Portugal espelham os anos que passou no país. Para não renovar o contrato de renda das duas assoalhadas, em Lisboa, onde viveu com a filha deficiente e os pais, e ainda perder a caução por não ficar até ao fim, ficou de favor um mês em casa da sobrinha e do marido, a dormir num colchão. Marcou despedidas de amigos e guardou a tarde do domingo para uma última ida à igreja evangélica Sara Nossa Vida, em Benfica, onde descobriu uma segunda família. Ficou ainda de ir buscar dois discos que gravou no estúdio de um amigo português, com os quais sonha lançar-se numa carreira musical, part-time do trabalho como camionista que tem garantido no Brasil. No YouTube é David Alexandre, cantor romântico com algumas centenas de visualizações. No bilhete de embarque, Alexandre Freitas, 39 anos, imigrante em Portugal há dez. De partida de vez.

De repente trocam-se as voltas. Entre as malas por fazer e a agenda lotada, surge um último biscate para ele e para o pai. É adaptar e seguir em frente. Foi assim quando trabalhou 30 dias numa empresa de entrega de móveis que fazia serviços para o IKEA e no fim não lhe pagaram. Ou quando estava a dois meses de ficar efectivo numa firma de camiões de lixo e acabou na rua. Ou quando o casamento de 18 anos terminou sem pré--aviso. Ou então quando comprou um Fiat Uno usado por 300 euros e passado dois meses saiu um dia de casa e não o viu à porta. Natural de um dos epicentros do narcotráfico no Sul do Brasil, onde o que mais o assusta é a insegurança, acabou roubado pela primeira vez em Caneças. Quando o carro apareceu, batido e com garrafas de cerveja e cachaça, sinal de brincadeira de algum miúdo, deram--lhe 20 euros por ele no ferro-velho.

A proposta são 90 euros para cortarem uma palmeira num quintal na linha de Cascais. Viveu destes trabalhos no último ano e meio. A manhã do último domingo em Portugal esgota-se a tentar cortar a árvore com um serrote, sem sucesso. Os planos passam para a tarde, falha o culto e a despedida do pastor e à noite vai a correr buscar os discos. Como a palmeira dá mais luta do que esperavam, ainda têm de lá voltar na segunda-feira e é preciso comprar uma motosserra. No vai e vem, Alexandre fica três horas parado no IC19 sem gasolina. Quando despacha a árvore, está a horas de apanhar o avião, marcado para a madrugada de terça-feira. De directa e em três viagens, como se a vida fossem episódios de novela todos seguidos, leva oito malas e os pais para o aeroporto, vai buscar a filha a casa da mãe e embarcam os quatro.

O retorno Alexandre é um dos muitos brasileiros que nos últimos tempos decidiram voltar a casa, ao país que todos dizem estar na mó de cima, a começar pela irmã, que se foi embora depois de perceber que a patroa afinal nunca tinha descontado para a Segurança Social e não poderia regularizar a situação no país. De volta a casa, a irmã mostra-lhe pelo Skype como o arroz, o leite ou as bolachas começaram a ter preços parecidos com os de Portugal, provas reais de que a vida lá está a melhorar. Outra é um tio ter construído um bilhar e uma churrasqueira em casa. "Está melhor, mas ainda não é a mesma coisa. Para quem tem trabalho, continua a ser melhor estar em Portugal", acha Alexandre. "Aqui uma pessoa trabalha e mesmo que não ganhe muito pode comprar uma camisola ou mesmo um telemóvel na hora. Lá fica-se um ano a pagar um par de sapatos. Quando chega ao fim já são precisos sapatos novos."

O pior é quando não há trabalho. A espiral de desemprego e as notícias de que em casa não falta serviço, e para mais vem aí o Mundial, são o principal peso na decisão de partir. Mesmo sendo a casa de Alexandre uma terra de nome Araçatuba, cidade do interior a 600 quilómetros de São Paulo, que compara em dimensão com Setúbal e em cenário às cenas da novela "Rei do Gado".

Só na igreja onde Alexandre ia ao culto partiram 20 famílias no último ano. Mas os números globais mostram uma fuga maior: a população brasileira em Portugal foi a que mais diminuiu entre 2010 e 2011, cerca de 6,9% (a redução global de imigrantes foi de 1,9%). Continuam a chegar brasileiros ao país, afinal são a comunidade mais representativa (25% do total). Mas em 2011, o último ano com dados disponíveis no SEF, o saldo entre entradas e saídas foi negativo. Ao todo terão saído mais de 20 mil brasileiros de Portugal; já que foram emitidos 12 800 novos títulos de residência mas a comunidade perdeu 7900 pessoas. Desde então há a percepção de que as saídas têm aumentado.

Para Alexandre, o dinheiro pesou na decisão mas ainda dava "para safar". Estava sem emprego estável há ano e meio e depois de ter chegado a ganhar 1500 euros por mês em biscates quando ainda nem estava legal em Portugal, das tais entregas de móveis a lavar casas de banho de ginásios, agora o máximo que fazia num mês eram 500. Mas o que o fez pedir ajuda ao Programa de Apoio ao Retorno Voluntário, da Organização Mundial para as Migrações (OIM), foi o medo de ver Jessica, a filha de 16 anos, presa para sempre a uma cadeira de rodas por falta de estímulos.

Jessica veio em 2007 ter com os pais. Com uma deficiência profunda, corria e dizia papá e mamã quando a reencontraram depois de quase cinco anos separados, eles a fazer pela vida em Portugal e ela com os avós em Araçatuba. Hoje não reage, não anda, toma os medicamentos diluídos com a ajuda de uma seringa, tem espasmos musculares que a fazem bater com a cabeça nos objectos à volta. Em cinco anos, e com uma dezena de inscrições, Alexandre conta que nunca conseguiu uma vaga para ter apoio profissional. Desempregado, comprou uma bola de fisioterapia e foi tentando ajudar em casa, sem resultados.

"Não tive muita sorte mas não culpo o país, cada um tem a sua sorte. Conheço quem tenha vindo depois de mim e esteja bem e também quem tenha regressado antes", conta Alexandre. É uma mistura entre jeito de ser e fé, define. Percebeu essa força quando, 20 dias depois de Jessica nascer, lhe disseram que a menina tinha um buraquinho no cérebro do tamanho de um grão de arroz que impedia o desenvolvimento. Ele com 22 anos, tinha deixado de estudar aos 16 para conduzir camiões. O que ganhava torrava, sem pensar muito no amanhã. "Comecei a reclamar com Deus mas não demorou a perceber que estava a ser egoísta. Qual é a diferença de sair a mim ou a outra família? Hoje sinto que se não tivesse uma filha assim seria um quadrado, um burro."

Se é Jessica que o faz voltar a casa, foi também a filha que o fez vir. Quando passou a precisar de cuidados médicos, remédios que por mês no Brasil chegam aos 900 reais (350 euros), percebeu que tinha de ganhar mais. A vinda para Portugal aconteceu depois de lhe negarem um visto para os EUA, onde chegou a pensar que bastaria "cara e coragem" para, sem arranhar sequer o inglês, mudar de vida. Era ingénuo, define-se de novo. "Senti tantas dificuldades falando a mesma língua, imagine se tivesse ido..."

O mito Quando lhe falaram de Lisboa, alinhou sem pensar muito. A fama era boa. Primeiro viria com a mulher para se instalarem e arranjarem um pé-de- -meia e depois chamariam a filha. Passaram cinco anos, três até conseguir legalizar-se com trabalho estável e descontos para a Segurança Social. Colocado na empresa de trabalhos de limpeza como condutor, ganhava 1400 euros a trabalhar os sete dias da semana. Até o conseguir, Jessica tinha passado de criança a adolescente sem ver os pais. "A gente acha? uau, é Portugal, é a Europa. Vamos ter uma boa moradia, condições financeiras melhores, saúde melhor, segurança melhor. Quando se dizia Europa imaginava-se logo outro mundo. Quando a gente chega e cai na realidade vemos que é diferente." A discriminação e a desconfiança dos primeiros tempos contrastam com exemplos opostos, que também encontrou, mas levaram tempo. "Até encontrarmos alguém que confie em nós e nos dê uma oportunidade passa pelo menos um ano. Só não passei fome porque Deus não quis. Comprava o pão com queijo e fiambre para o dia e guardava um pouco para o amanhã, nunca se sabia se ia haver trabalho no dia a seguir."

A menina chegou e começaram a procurar escola. A mulher deixou de poder trabalhar para tomar conta dela e ele redobrou o trabalho. Aguentou a despesa cinco anos e ficou desempregado. O casamento acabou e ficou com a guarda da filha. Das muitas tentativas para a pôr numa escola guarda apenas os papéis das inscrições de Jessica, que nunca tiveram resposta. A última foi há um ano numa instituição em Alfragide. Disseram que em seis meses teria vaga e nunca o chamaram. "A resposta foi sempre a mesma: estavam cheios, era esperar. A única vez que me disseram que era garantido teria de ficar interna e podia ir visitá-la uma vez por mês. Como é que eu ia viver longe da minha filha?"

No ano passado, farto de tentar, até uma educadora lhe disse que, se queria cuidar da filha, era melhor voltar para o Brasil. "Em termos de saúde não posso reclamar, foi sempre bem atendida. Mas nunca pensei que não houvesse uma escola. Haver há, mas não são suficientes. Foi isso que me disse a educadora, que tinha feito formação do Brasil: vocês lá estão melhor do que nós."

No desespero, contactou a escola que Jessica deixara em Araçatuba. Lá, ia todos os dias um autocarro buscá-la a casa. Tinha natação, equitação, terapia da fala, tudo gratuito. No início do ano responderam que tinha vaga. "Aqui mesmo ganhando mal era melhor, mas não podia deixá-la apagar-se", conta Alexandre. Procurou trabalho no Brasil e conseguiu uma promessa: vai ganhar o equivalente a 800 euros como camionista. Mas lá, só a medicação da adolescente custa o triplo. Sabe que não vai chegar se não arranjar mais nada entretanto. Foi por isso que pediu ajuda para se ir embora: "Tinha dinheiro para as viagens mas chegava lá e não tínhamos nada para viver." Aprendeu com a experiência em Portugal que é preciso um pé-de-meia: quando veio pensou que tinha dinheiro para um mês e acabou em dez dias. Por ter sido considerado um caso especial, teve apoio em dois meses. Com o aumento dos pedidos na OIM, o tempo de espera nos casos aceites ronda cinco meses.

Um país triste Alexandre fala por si: emigrar nunca mais. Dos portugueses, diz que não fica com uma imagem única. É relativo, como é relativo falar do brasileiro. "Há gente boa e gente ruim. Os portugueses são desconfiados, custa conquistá-los. Mas se deixo pessoas que nunca mais quero ver, patrões que exploram, conheci outros bons, que me ajudaram."

Depois há uma tristeza que o brasileiro estranha, que não imagina na Europa, que pintam tão desenvolvida: "O povo é muito triste. O brasileiro não tem nada, come um ovo frito e fica feliz. Vocês têm carro bom, casa boa e é uma depressão constante. Talvez seja do stresse. Não sei qual é a explicação, se calhar é por termos o Carnaval. Na primeira passagem de ano aqui o silêncio na rua assustou- -me. Que povo triste."

Não guarda mágoa, mas o país que significava esperança em 2003 significa agora só saudade. "Não ganhei dinheiro, mas foi uma lição de vida. Pode não ser Portugal, é ser emigrante. Ou se tem juízo ou vai-se preso. Como acho que até para roubar é preciso dom, e não tenho, tive de entrar na linha. Uma pessoa arrenda casa com um português que não gosta de brasileiros. Se falhamos estamos tramados." Volta convencido de que é a decisão certa, mas com os pés mais assentes na terra do que quando chegou. "Vim para mudar de vida. Hoje a minha única expectativa é a escola da Jessica."

Quando descolaram, Junho continuava frio e nublado, tempo a que Alexandre nunca se habituou. Não deixamos de pensar nas reviravoltas constantes da vida dele quando dois dias depois aparecem o calor e o céu azul que o faziam "esquecer o Brasil". Motivo para espreitar a música "Semente do Amor", que Alexandre - no modo David Alexandre que sonha ir bater à porta de editoras de S. Paulo - diz ser o seu cartão-de-visita. Podia ter sido a banda-sonora da despedida. "Caminhando pela vida, em estrada sem destino, tentei fugir mas acabou aqui. E hoje eu me perco, em pleno oceano, tentando esquecer o que não pode esquecer."