in Diário de Notícias
Talvez a velha máxima de que se convenientemente torturados os números dizem o que quisermos tenha a sua ilustração mais feliz (ou infeliz) nos dados relativos à pobreza, à desigualdade e à privação material em Portugal. De tanto se repetir que o País é um dos mais desiguais do mundo desenvolvido e que a taxa de risco de pobreza é muito alta, os portugueses ter-se-ão convencido de que andaram de cavalo para burro nos últimos 30 anos. Especialistas ouvidos pelo "Diário de Notícias" explicam porque é que não é assim. A explicação está nos indicadores utilizados: são relativos.
Não é raro ouvir-se, em fóruns radiofónicos e televisivos, que nunca se viveu tão mal em Portugal, ou que nunca houve tanta pobreza - e até fome. Verdade? Mentira? Como se pode ver no gráfico destas páginas, a taxa de risco de pobreza (antes das transferências sociais) desde 1993, quando começaram a existir dados fiáveis, até 2010 aumentou, de facto. E o nível de desigualdade, aferido pelo índice de Gini, continua a ser um dos mais elevados do mundo desenvolvido, apesar de ter descido consideravelmente nos últimos anos. Mas quer isso dizer que há mais portugueses, hoje, a viver mal do que há 20, 30, 40 anos?
De modo nenhum, diz Carlos Farinha Rodrigues, economista e investigador na área da pobreza e das desigualdades. "O Portugal de hoje não tem nada que ver com o Portugal de há 30 anos. Demos um salto fantástico. Basta pensar num indicador estrutural como o da percentagem do orçamento que as famílias gastavam em alimentação, e o que gastam agora. Passou de cerca de 40% para menos de 20%." E adverte: "É fundamental distinguir o que são níveis de vida e indicadores de pobreza."
O sociólogo Paulo Pedroso, que foi ministro da Segurança Social no Governo Guterres, corrobora: "Desde que se deu a adesão à então Comunidade Económica Europeia a sociedade portuguesa teve melhorias assinaláveis em todos os escalões. Ao contrário do que se passa nos EUA, os nossos pobres não estão pior do que há 30 anos." E vai mais longe: "A questão de fundo que não é possível iludir é que pobreza no sentido radical do termo, no sentido dos objetivos de desenvolvimento do milénio, a Europa erradicou. O que a Europa tem é um grupo de pessoas que têm uma privação injusta de uma quota. Aliás, quando começou a discussão sobre a pobreza na Europa, nos anos 80, e se começaram a discutir os indicadores, alemães e britânicos, então com Khol e Thatcher no poder, estavam contra, porque diziam que não se iria medir a pobreza, mas a desigualdade. E de facto considerar pobre qualquer pessoa que viva com menos de 50% ou 60% do rendimento mediano do País não é uma medida de necessidades básicas, mas de desigualdade." Mas, por outro lado, Pedroso frisa que "não há uma alteração estrutural do fosso entre ricos e pobres desde os anos 80 em Portugal. O que há é um País coletivamente a viver melhor e onde foram introduzidos, a partir da segunda metade dos anos 90, mecanismos de correção da pobreza extrema, como o rendimento mínimo garantido [hoje RSI] e mais tarde o complemento solidário para idosos".
Como o ex-governante do PS Carlos Farinha Rodrigues reconhece ao RSI e ao CSI um papel muito importante na melhoria dos indicadores: "Até 2009 reduzimos a taxa de risco de pobreza, após transferências sociais [que incluem pensões e todas as outras prestações específicas como o RSI e o CSI] de 23% para 18%, e nos idosos de 40% para 20%. Tínhamos uma diferença de seis pontos percentuais em relação à UE em 1993 e em 2009 passámos a um. Estas alterações estarão relacionadas com o melhorar do rendimento dos sectores que o tinham menor, graças ao aumento do salário mínimo nacional, que subiu acima do salário médio, e graças às políticas sociais. E também tivemos uma ligeira melhoria na taxa de desigualdade." Outro aspeto no qual se registou uma evolução positiva foi a da eficácia das transferências sociais, visível no gráfico: apesar de a taxa de risco de pobreza antes das ditas ter aumentado entre 1993 e 2009, diminui após transferências.
Mas estas melhorias podem estar em perigo: Farinha Rodrigues alerta para o facto de pela primeira vez a linha (ou limiar) de pobreza ter recuado de 2009 para 2010, baixando, por indivíduo, de 434 euros/mês para 421. Neutralizando essa descida, que se deve a uma baixa global de rendimentos na sociedade portuguesa, e atualizando o valor de 2009 com base na inflação, o economista chega a uma taxa de pobreza, para 2010, de 19,6% - um aumento de 9,5%. O que, mais uma vez, demonstra como os indicadores podem ser traiçoeiros no aferir das condições reais de vida. E, por outro lado, como é possível que avanços tão positivos como os verificados nos últimos anos caiam repentinamente por terra.
Um desenvolvimento que talvez não surpreenda por aí além Alfredo Bruto da Costa, autor de vários estudos sobre pobreza em Portugal, ministro dos Assuntos Sociais do Governo Pintasilgo e atual presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz. "Defino a pobreza como sendo uma situação de privação por falta de recursos. Tem havido uma melhoria nos últimos anos, mas devemos perguntar se foi ao ritmo necessário. E não considero que tenha havido medidas de luta contra a pobreza, mas apenas que a atenuam. Praticamente nenhuma delas combate a falta de recursos. Se uma pessoa depende de meios extraordinários de apoio continua a ser pobre." O problema, resume, "não está tanto no que se faz como no que fica por fazer. Se o que tem sido feito é melhor do que nada? Com certeza. Aliás, recordo-me que Guterres teve perfeita noção disso: disse que o RSI não ia tirar as pessoas da pobreza, ia tentar mitigá-la".