Por Marta F. Reis, in iOnline
Revolta, conformismo, apatia, ironia. Nas ruas de Lisboa, a crise política dá para chorar e rir
"O negócio? Vai de vento em popa". Manuel Marques, 68 anos, responde em frases curtas sem levantar os olhos do caderno e da moldura que está a montar numa loja em Alvalade. Este é o único momento em que sorri, por simpatia. Como é que reagiu às notícias? "Apagando a televisão, para não me irritar mais." Como é que isto vai ser agora? "Já estava mal e vai ficar pior." Na porta, um papel anuncia descontos de 40% em quadros e espelhos expostos no interior da loja. Quando é que começou a campanha? "Há quinze dias." Está a resultar? "Não".
Nas ruas à procura do estado de espírito, os olhos de Manuel são um encontro desolador. A loja está vazia. Quase apático, vai escrevinhando no bloco e ajeita os caixilhos. Decidiu esta semana que nunca mais vota. Não há revolta, apenas uma angústia onde não parece caber qualquer tipo de esperança.
"As pessoas estão todas assim, desorientadas, tristes", conta Zélia, 65 anos, vendedora no mercado de Alvalade. Passa pouco as 14 horas e já não há nenhuma banca montada. "Dantes ficávamos até às 16h, agora ao meio-dia já não há ninguém." A crise na carteira não é de agora, vem desde 2008 quando chegaram a ser seis funcionárias na banca de peixe. Agora são duas. E a crise política desta semana? "Isso, é tudo igual. Eles querem todos é poleiro. Se fazem fitas e discussões é porque aquilo lá está bem. Esse das Finanças fez-nos comprar umas máquinas novas, para cima de 1000 euros. Agora é preciso um programa novo e vão ser mais 200."
Modernizar seria aceitável, não fosse o peixe não se vender e acabar congelado ao final do dia. Ou as flores, conta Maria, 84 anos. "No domingo foi tudo para o lixo", diz. "Isto acabou. Está tudo calado."
No silêncio do mercado, irrompe a voz de Jorge, estafeta de 34 anos que transporta baldes de gelo e lixo das bancas por 15 euros à semana, e só porque os mais velhos continuam a pagar por esse serviço. "Dêem-me carta branca que eu governo o país, mas não me lixem. Eles a ganhar e nós com cada vez mais descontos." Aos 41 anos, há um segundo filho a caminho.
Para Jorge, a solução para crise do país, seria taxar mais quem ganha mais, em vez de penalizar os baixos rendimentos. "Ganhas 200 mil, passa para cá 100", faz de governante. A solução para a crise política era uma ETA, da qual seria sócio número um. A ironia repete-se na rua, como o negócio de vento em popa de Manuel ou o discurso Odete, numa lavandaria da Lapa. Começa por exigir, delicada, que escrevamos que naquela loja é muito feliz porque trabalha desde os 14 anos e nunca gastou mais do que tinha. Para desatar a disparar contra quem interrompe uma legislatura e celebra com isso.
De fundo, a Sic Notícias grita declarações políticas do parlamento. "O que é que essa piolhosa sabe da vida?", ataca uma deputada da esquerda. "Deviam ir mesmo para lá esses comunistas, havia de ser castigo. Mas alguém acha que vamos lá sem sacrificios? E essas pessoas que enchem o Pavilhão Atlântico em todos os concertos, onde é que está afinal a crise?"
Odete diz que não entendemos nada, que o sofrimento é a única escola. Não teve filhos porque não quis deixar ninguém num mundo podre. "Não acha que isto tem de mudar?", repete. O sofrimento dela está lembrado em fotografias por cima do televisor, imagens da antiga fábrica Tinturaria Nacional, saneada após o 25 de Abril. "O meu pai era dono de um império. Um dia entraram por lá a dentro com metralhedoras e perdeu tudo", conta.
Dessa revolta, passaram anos e está ali, onde continua a dar emprego a funcionários que já estavam no negócio familiar há 50 anos e diz recusar carimbar as folhas de muitos que entram sem querer trabalhar, só à procura do registo para manter o subsídio do desemprego. "Já mais de 50 vezes vieram cá e quando ofereci trabalho ainda me ofenderam. Só querem o carimbo. Salazar teve muitos defeitos, mas dizia uma coisa: em Portugal nunca fomos muitos, mas sempre que fomos todos fomos muitos. Trabalhem."
Carlos Costa tem 47 anos e é encarregado de construção civil. "A sensação é dúbia. As coisas não estavam bem mas não sei se a alternativa será melhor. O problema existe, o que lhes falta é imaginação. Foram buscar o programa dos outros sem ter o mínimo contacto com o terreno, claro que não funcionou. Não me importo se voltar tudo à estaca zero, se for com pés e cabeça." A começar, diz, seria não permitir que a corrupção continue a enriquecer os ricos, mais os seus offshores. Se isso é incentivo, que valha para todos.
Impreparação política, birras e mal entendidos acumulados são juízos comuns sobre o diferendo Portas/Passos Coelho.
Fernanda, brasileira de 32 anos que há 15 achou que Portugal era a solução para a crise no Brasil, alinha na análise mas está menos certa de que a crise política mude o que quer que seja. "Diz-se que vão pedir um segundo resgate, penso que já iam pedi-lo na mesma." No restaurante, a clientela só se mantém porque pelo preço de meia-dose dão menú completo. Dia 6, regressa ao Brasil. "Gostei muito mas não vejo perspectivas para os meus filhos. O Brasil demorou 20 anos a sair da crise, não me parece que Portugal vá demorar menos."
Num talho 264 da Lapa, José Filipe está tranquilo. "Já estávamos à espera, estes políticos não têm capacidade de gestão." Entre os fregueses, alguns desabafos e piadas. "Agora que abriram as Portas tudo sai", repete uma das graças. Já teve quatro empregados, agora só tem um. Mas sente que nas últimas semanas o negócio até estava a arrebitar. Talvez por ser uma zona boa da cidade? "Isso não quer dizer nada. Às vezes pessoas com nome viradas do avesso já não cairia nada." A crise pode medir-se em peças do lombo, muito mais fácil que fazer prognósticos políticos. Há três anos saíam seis por semana, agora são no máximo três.
Nos cafés, não é díficil dar com desabafos em voz alta. "Isto agora quem puder que se segure", desabafa uma senhora nos 80. Não estão informados, não querem falar, não percebem nada do assunto, são algumas respostas. "Não temo nada, só espero que haja mais carácter", diz Manuela Pinto, professora de 57 anos. "Surpreende-me sobretudo o Presidente da República não fazer nada." Odette, de dedo em riste, teme no fundo da agitação que não consegue controlar que vão dois anos de sacrífico ao lixo. "Se sofremos dois anos, não se pode travar isto a meio."