Aline Flor, in Público
O Tribunal de Família e Menores do Seixal ouviu ontem os pais das crianças retiradas em Abril à família por risco de mutilação genital feminina (MGF). A audição, porém, nada alterou. A 16 de Maio, os progenitores das duas meninas, uma de um ano e meio e a outra com quase dois meses, regressam ao tribunal. Enquanto isso, as crianças continuam numa casa de acolhimento, diz Ilda Oliveira, advogada da família.
O caso remonta a Março deste ano.
A mulher, de 29 anos, deu à luz no Hospital Garcia de Orta, em Almada, e a equipa médica, vendo que era excisada, questionou-a se pretendia manter a tradição. A mulher revelou que dentro de seis meses iria viajar para a Guiné-Conacri e submeter as Ælhas àquela prática.
A Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) do Seixal foi alertada e convocou ambos os progenitores para garantir que sabiam que a excisão é crime e que não iriam submeter as Ælhas ao corte. Pai e mãe não compareceram à reunião agendada.
AÆrmam que houve uma falha de comunicação, que avisaram que a criança tinha uma consulta naquela manhã e que a família não chegaria a tempo da reunião. A CPCJ considerou a falta de comparência sinal de não colaboração e propôs ao tribunal a retirada do bebé, na altura com três semanas, e da irmã de um ano e meio, à família.
Ambas se encontram numa casa de acolhimento. Os pais visitam as Ælhas todos os dias, sendo que a mãe continua a amamentar a recém-nascida.
Estas visitas só não acontecem aos feriados, quando não há funcionários para permitir visitas, relata a advogada. “É inadmissível”, queixa-se a advogada, relembrando que o bebé está em fase de aleitamento.
Ontem, a audição serviu para rever o processo de promoção e protecção das crianças. O juiz ouviu o relatório feito pelas assistentes sociais sobre a situação da família, os pais da criança e as alegações do Ministério Público.
O futuro das meninas continua em aberto. As duas crianças poderãocar longe da casa dos pais por tempo indefinido, enquanto o juiz considerar que ainda não estão reunidas as condições para regressarem.
Retirar ou não? A decisão de retirar as menores é vista de diferentes formas entre proÆssionais, activistas e outras pessoas que desenvolvem trabalho de prevenção junto de comunidades portuguesas nas quais a MGF ainda é praticada.
Mas o que prevê a lei? A procuradora Ana Teresa Leal — que em 2016 abriu um inquérito quase inédito para averiguar a eventual prática de crime de MGF (o processo acabou por ser arquivado pelo procurador que a substituiu) —, explica que há contextos especíÆcos em que é indicado retirar as crianças aos pais.
A Lei de Protecção de Menores diz que, havendo o alerta “de uma situação em que possa existir perigo” e com “indícios seguros” de que os pais querem submeter a criança à MGF, aconselha-se a “aplicação imediata de medida cautelar” — entre as quais se inclui a retirada das crianças. Mas situações como esta não são a regra, explica a procuradora. Normalmente, quando questionados por técnicos de saúde ou assistentes sociais, os pais dizem que não pretendem cumprir a tradição.
Entre 2015 e 2018, houve 11 processos nas CPCJ, como o PÚBLICO noticiou em Setembro último. Nesse período, foram instaurados quatro processos de promoção e protecção judiciais nos tribunais de família e menores envolvendo risco de MGF, de acordo com informações do Ministério Público. Desde 2015, quando a MGF se tornou um crime autónomo, houve dois inquéritos abertos por eventual prática de crime — um dos casos já noticiado, outro só agora Ægude coacção do âmbito dos processoscrime. Ainda assim, os números parecem baixos, tendo em conta um estudo publicado em 2015 que estimava que, em Portugal, cerca de 1830 meninas com menos de 15 anos já foram submetidas a esta prática ou estão em risco de o ser. Estima-se que 6576 mulheres, com 15 ou mais anos, já tenham sido vítimas de mutilação genital.
O que as estatísticas disponíveis não mostram é o número de casos em que o risco é identiÆcado, mas a informação não chega a ser encaminhada para as CPCJ. O problema é resolvido com os pais directamente pelas entidades que o detectam, em áreas como A mãe amamenta a recém-nascida todos os dias, excepto aos feriados, quando há menos funcionários.
Uma situação que a advogada considera inadmissível Meninas em risco de mutilação continuam à guarda do Estado Em Abril dois bebés foram retirados à família por risco de mutilação genital feminina. Ontem, a família foi ouvida, mas o tribunal manteve medida. Quais são as opções quando se quer prevenir? Protecção de menores Aline Flor rando na recolha da PGR. Ambos foram arquivados sem acusação.
A procuradora Ana Teresa Leal explica que um caso como o do Seixal pode não se enquadrar no crime de mutilação genital feminina. A lei prevê que os actos preparatórios sejam suÆcientes para conÆgurar a prática deste crime, mas, neste caso, mesmo com as declarações da mãe às enfermeiras, seria necessário ter havido medidas mais concretas, como a compra das passagens para a Guiné. E, tratando-se de um processo de promoção e protecção judicial, Æca também posta de parte a hipótese de retirada de passaporte da criança para impedir a viagem, uma medida
Audições continuam esta semana saúde, educação ou segurança social.
O acompanhamento mais adequado seria uma medida de apoio aos pais, explica Ana Teresa Leal. Por exemplo, frequentar um programa de informação ou algum tipo de acção de sensibilização para conhecer as consequências para a saúde da prática da MGF. Seria também necessário garantir que os progenitores estão plenamente conscientes das implicações legais, caso não tenham sido informados ao longo do processo.
Pode também pedir-se aos médicos de família que acompanhem as crianças, examinando-as durante as consultas para saber se foram sub- aline.flor@publico.pt metidas à prática, explica Elisabete Brasil, da União de Mulheres Alternativa e Resposta. A jurista, que trabalhou na área da promoção e protecção de jovens antes de se dedicar à violência doméstica de forma mais abrangente, em casas-abrigo, sublinha que “nunca houve tantas orientações, tanto conhecimento como existe hoje” sobre o fenómeno da mutilação genital feminina. “Não signiÆca que já tenhamos tudo feito”, ressalva, “mas estamos a fazer um caminho, e já estamos mais interventivos”. com Rita Marques Costa O caso das duas meninas retiradas aos pais foi denunciado publicamente a 12 de Abril por um dos líderes religiosos presentes na conferência As Meninas e Mulheres, a Tradição e o Islão, organizada pela Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade. Na sequência da denúncia, o Alto Comissariado para as Migrações foi informado do caso e “está a acompanhar os desenvolvimentos juntamente com a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens”, respondeu ao PÚBLICO o gabinete da secretária de Estado, Rosa Monteiro. O executivo sublinha que houve uma tomada de posição pública “particularmente significativa” por parte de líderes religiosos, ex-fanatecas (mulheres que praticam o ritual) e representantes da comunidade islâmica.
Em Fevereiro, no 4.º Encontro Regional sobre MGF, em Lisboa, Rosa Monteiro sublinhou que a intervenção tem que ser “local e qualificada”. A prevenção e combate devem fazer-se com envolvimento das autarquias e entidades que têm contacto directo com as comunidades.
O foco deve ir além da punição das famílias praticantes, sob risco de “estigmatização criminalista que pode contribuir para ocultar ainda mais esta prática”.
Elisabete Brasil, da UMAR, lembra as pós-graduações que nos últimos anos têm preparado profissionais na região de Lisboa para lidar com estes casos. As directrizes das diferentes áreas foram actualizadas depois da mudança da lei e voltarão a sê-lo este ano. As da saúde serão revistas até ao final de 2020. A.F.
Intervenção “local e qualificada”