Bárbara Wong, in Jornal Público
Aumento das taxas de juro da habitação, dos combustíveis e dos alimentos fazem sentir-se com maior acuidade. Famílias cortam na alimentação
Um dia por mês, às 9h15, o recepcionista da Legião da Boa Vontade, no Porto faz as marcações para a assistente social que analisa os pedidos de ajuda de pessoas que ficaram desempregadas, que não têm dinheiro para pagar as contas, que não têm o que dar de comer aos filhos. Nesse dia, conta Luís Mártires, o recepcionista, as pessoas enfileiram-se à porta logo às sete da manhã e às 9h30 já a lista está completa. "Antigamente, não era assim. Antigamente a lista levava 15 dias a ser preenchida, agora é em 15 minutos", espanta-se. As coisas mudaram e foi para pior, continua: "Agora, estamos a ajudar pessoas que, em tempos, já nos ajudaram", lamenta.
O aumento das taxas de juro à habitação, do preço dos combustíveis e agora dos alimentos são incomportáveis para um país onde uma grande percentagem da população vive com baixos salários ou onde, como no Norte do país, há cada vez mais empresas a fechar e mais pessoas no desemprego. O retrato é feito pelo padre Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS), depois de uma reunião com centenas de organizações assistencialistas ligadas à Igreja Católica, no Porto.
Há crianças que chegam às escolas sem ter tomado o pequeno-almoço, denuncia. Há idosos que, face à inflação e à menor comparticipação do Estado nos medicamentos, prefere cortar na alimentação, acrescenta Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar contra a Fome. E, há as instituições que não conseguem fazer face às solicitações, cada vez maiores, das famílias, e ao aumento do custos de funcionamento, contrapõe Lino Maia.
O Centro Social do Casal Ventoso, em Lisboa, é disso exemplo. As famílias não pagam as mensalidades das crianças que frequentam o berçário, a creche ou a escola; e a instituição não as exclui, explica Luís Coelho, presidente da instituição. No entanto, sem esses pagamentos, não consegue fazer face às despesas do dia-a-dia e ajudar os mais carenciados.
A Comunidade Vida e Paz, que apoia os sem-abrigo, tem três carrinhas que percorrem a cidade de Lisboa diariamente. Por isso, o preço dos combustíveis tem-se feito sentir no orçamento, confessa Jorge Santos, presidente.
Por seu lado, a União das Misericórdias Portuguesas (UMP) prepara-se para apresentar ao Governo as suas contas que reflectem o aumento do custo de funcionamento, onde a subida dos preços dos produtos alimentares se faz sentir, informa Manuel Lemos, presidente da união.
A crise está instalada em Portugal, embora não com a dimensão que se observa noutros países como o Afeganistão, Filipinas ou Haiti, diz Fernando Nobre, presidente da Assistência Médica Internacional (AMI). Com a escalada de preços que se faz sentir de semana para semana, se as famílias quiserem continuar a pagar a casa e o carro, acabarão por cortar na alimentação, refere.
Dividir o mesmo por mais
Aliás, é o que já se assiste entre os que batem à porta da AMI. Aqueles que pedem ajuda são maioritariamente os que declaram que têm dificuldades financeiras e a primeira coisa que pedem são alimentos, revela Fernando Nobre. Anualmente, a associação recebe 500 toneladas de alimentos da União Europeia, que distribui. Em 2006, esses produtos chegaram a 2434 famílias (5137 pessoas); um ano depois o número de agregados familiares mais que duplicou, para 5524, e foram apoiadas 16.531 pessoas. "O que quer dizer que cada família levou menos alimentos", contabiliza Fernando Nobre.
Esta conta de dividir o mesmo por mais pessoas, é feita por outras associações. O Banco Alimentar contra a Fome celebrou este ano mais 15 acordos com igual número de instituições, que vai somar às mais de 1330 que apoiam acima de 216 mil pessoas. "O que faz que aquilo que cabe a cada uma delas possa diminuir", aponta Isabel Jonet.
No Porto, a Legião da Boa Vontade não consegue apoiar mais famílias porque vive de donativos. Na Póvoa de Santo Adrião, o Fundo de Apoio às Famílias Necessitadas está a reduzir os produtos dos cabazes que distribui por 140 famílias, mensalmente, "porque não chega para todos", diz Duarte Nuno Miranda. "Há cada vez mais famílias a pedir auxílio", constata. Ali começam a chegar algumas famílias da chamada pobreza envergonhada, ou seja, pessoas com trabalho, mas que não conseguem fazer face a todas as despesas mensais.
"Há mais famílias com as características de novos pobres, são famílias normais que assumem créditos e em que o dinheiro não chega para todo o agregado", confirma Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar contra a Fome.
O aumento dos preços dos bens alimentares preocupa a Comunidade Vida e Paz, porque os "benfeitores podem reduzir o auxílio que prestam", explica Jorge Santos. "Vivemos sempre com défice e os aumentos dos preços dos combustíveis e dos alimentos só vai aumentar esse défice", reflecte. "Mas o coração vai sempre à frente e, perante determinados problemas, não podemos recusar ajuda", confessa.
Isabel Jonet é sempre "muito optimista" no que diz respeito às campanhas do Banco Alimentar e está confiante que "é em tempos de crise que as pessoas são mais solidárias". "Esta é uma causa importante, porque falamos de alimentação", declara.
Face ao momento que se vive, Lino Maia está desanimado: "Contrariamente ao discurso oficial que faz passar a ideia que estamos num país de maravilhas. Hoje estamos melhor do que amanhã porque as perspectivas não são nada animadoras."
"Há pessoas que não têm dinheiro para comprar leite e pão todos os dias. Esta é uma realidade que está fora do horizonte dos governantes", acusa Luís Coelho, do Centro Social do Casal Ventoso.
Também Fernando Nobre não prevê que a situação melhore nos próximos tempos, aliás, "só se pode agravar se os juros à habitação continuarem a subir, assim como o petróleo e os cereais. Só espero que os agricultores portugueses reajam e plantem mais cereais, para que Portugal não fique refém do mercado global", apela. Também as instituições internacionais têm de "impor regulamentos para travar o desvario a que temos assistido", conclui.