13.11.08

Tradição deve respeitar direitos do ser humano

in Eduarda Ferreira, in Jornal de Notícias

Aceitação de culturas não é passe livre para abusos, diz relatório da ONU


Tradições enraizadas em algumas sociedades, como a mutilação dos órgãos genitais femininos ou o apedrejamento até à morte, só podem desaparecer se outros aspectos dessas culturas forem valorizados, diz relatório da ONU.

O relatório de 2008 do Fundo de População das Nações Unidas apela à construção de consenso em torno das questões culturais, de género e dos direitos humanos. O documento insiste no conceito de "sensibilidade cultural" para que sejam compreendidas mesmo as práticas mais arrepiantes (normalmente contra as mulheres), como a excisão feminina e a lapidação por adultério ou simples paixão fora dos consentimentos familiares ou ainda o casamento de crianças.

A estratégia preconizada por este fundo da ONU é a seguinte: de pouco vale em algumas comunidades haver leis que proíbam práticas lesivas dos direitos humanos, já que elas estão enraizadas nas culturas tradicionais e/ou religiões. Importará, sim, reforçar e apoiar o papel de pessoas quedentro dessas comunidades se opõem a tais práticas. Essas alianças com formadores e líderes de opinião poderão trazer mais mudanças no terreno. Mesmo as organizações de solidariedade internacionais devem munir-se da "lente cultural", uma ferramenta para entender as aspirações das comunidades e fazer alianças que permitam o respeito pelos direitos humanos.

A saúde materna e o combate à infecção pelo VIH - sida são exemplos adiantados pelo Fundo de População como campos em que muito há a fazer. Pessoas e organizações a actuar num meio podem convencer das vantagens do planeamento familiar e da assistência materno-infantil, ainda que em comunidades pobres. Em muitas delas, a mortalidade feminina e infantil não desce devido a preconceitos que impedem a mulher de ir a um hospital, ficando ela nas mãos de uma parteira tradicional/curandeira. A existência de assistentes qualificados que tenham um vínculo cultural com as mulheres que atendem seria o passo aconselhável para ultrapassar resistências.

Como exemplo de pontes construídas com pilares locais é citado o caso do Camboja, onde monjas e monges budistas se têm empenhado na luta contra a sida. Na área da saúde, é também referida a importância de o género masculino ser mais envolvido na execução de programas de saúde reprodutiva. Por outro lado, haverá que encontrar vias alternativas para determinadas práticas, como a excisão feminina, que faz parte de um ritual de passagem das meninas para a idade adulta (quase metade das raparigas da Guiné-Bissau é sujeita a esta prática). Manter um carácter festivo do ritual, deslocando-o mesmo só para a festa, é a sugestão ensaiada pelo relatório junto de quem pode ter influência nessas culturas.

Com tónica nos direitos humanos, o relatório afirma que a "sensibilidade cultural implica "estar preparado para o inesperado": lembra que muitas mulheres poderão apoiar "práticas que lhes são aparentemente prejudiciais" e ainda que "alguns homens podem trabalhar a favor da igualdade de género e contra o que são, aparentemente, os seus próprios interesses".

Igualdade de género e melhoramento da saúde materno-infantil são as duas grandes preocupações evidenciadas pelo relatório. Desde a década de 80 do século passado não melhoraram os números das mulheres que morrem por gestação ou parto: mais de meio milhão em cada ano. Por outro lado, o analfabetismo e pobreza continuam a incidir mais sobre a população feminina mundial.