Por Marta F. Reis, in iOnline
Especialista diz que maior acesso a antidepressivos tem mitigado efeitos da crise, mas uma maior venda de ansiolíticos é preocupante
Este ano já houve dois meses em que as vendas de antidepressivos ultrapassaram as 700 mil embalagens, número que nunca tinha sido superado. As farmácias estão também a vender cada vez mais ansiolíticos, com meses em que saem mais de 1,7 milhões de embalagens. Depois da escalada no ano passado, as vendas de antidepressivos, mas também de ansiolíticos, continuam a aumentar. Nos primeiros sete meses do ano, as vendas de antidepressivos subiram 5% e as de ansiolíticos 2%, isto quando no mesmo período de 2012 tinham aumentado respectivamente 7% e 1% face ao ano anterior.
Os dados foram fornecidos ao i pela consultora IMS Health. Se, no ano passado, o aumento das vendas era um sinal de que o estado de saúde mental dos portugueses poderia estar a degradar-se, fruto da conjuntura económica, este ano a informação reforça a tendência, mas ainda não permite resultados definitivos. Nos consultórios, há uma percepção de mais queixas. "Temos sinais de que estão a aumentar os casos de depressão, resultado de dificuldades económicas ou desemprego, mas temos a percepção de que são precisos meses ou anos para confirmar a relação. O que podemos dizer hoje, é que parece ser uma tendência mais sólida", diz Luísa Figueira, médica no hospital de Santa Maria e presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria. Mas os preços dos remédios também caíram, o que pode estar a reforçar o acesso.
Álvaro Carvalho, do Programa Nacional para a Saúde Mental na Direcção Geral da Saúde, assinala algumas dificuldades na análise dos dados das vendas: representam o número de embalagens, quando existem embalagens com quantidades diferentes. "Sabemos que em períodos de crise, em que há doença aguda ou menor poder de compra, as pessoas podem estar a comprar embalagens mais pequenas, o que pode diminuir este efeito." O especialista refere ter tido a mesma dificuldade na análise de dados que solicitou recentemente ao Infarmed para elaborar um balanço a pedido do Ministério da Saúde. "Foi-nos dito que este ano não havia capacidade para discriminar a informação. Talvez para o ano." Já o psiquiatra Ricardo Gusmão, também professor e investigador na Universidade Nova de Lisboa, diz que parece de facto estar a haver um aumento sustentado no consumo. O especialista sublinha que o melhor indicador é a dose diária definida por milhar de habitantes por dia, que dá uma percepção de quantas pessoas poderão estar a ser medicadas. A publicação desta variável a nível nacional e por região está prevista na monitorização mensal da Administração Central do Sistema de Saúde, mas não tem sido actualizada no site deste organismo. Gusmão fez a análise de 1995 até 2012, estimando que, em dez anos, o número de pessoas a tomar antidepressivos passou de quatro a cinco em cada 100 em 2003 para o dobro, oito a nove, o que significa que um máximo de quase 9% da população poderá estar actualmente medicada.
No caso dos ansiolíticos, o consumo será ainda maior, o que o médico considera que é preocupante: "Estarem a aumentar as vendas de antidepressivos não é preocupante, até porque estão a aumentar a um ritmo constante desde 1995, sem aceleração. Estão cada vez mais baratos o que os torna mais acessíveis". Já os ansiolíticos, do tipo benzodiazepinas, explica, dão dependência e agravam a depressão. Facilitam ainda situações de tentativa de suicídio e suicídio, quedas, acidentes rodoviários e demência. Se nos últimos dez anos as vendas diminuíram, a redução de custos e um eventual aumento de queixas pode estar a contribuir agora para o aumento. Ricardo Gusmão salienta que pode estar ainda por detrás de uma tendência que poderá ser mais grave, isto assumindo que é falsa a ideia de que os portugueses consomem antidepressivos em excesso, algo que não tem evidência científica de base. Segundo um estudo publicado este ano por Gusmão e peritos de outros países, Portugal é o único país europeu onde o número de suicídios não diminuiu nos últimos anos com o aumento do consumo de antidepressivos.
As explicações, por agora, estão em aberto. Mas há suspeitas: ou os registos de suicídio são de facto pouco fiáveis, como também suspeita, e há um défice nas estatísticas provocado, por exemplo, pela falta de contabilidade de mortes violentas indeterminadas. Ou então, pesa também o facto de os portugueses consumirem um excesso de ansiolíticos, que podem aliviar queixas mas não tratam, sustenta o médico. "No curto prazo, aliviam mas no médio e longo prazo dão mais problemas", diz mesmo Gusmão, lamentando que qualquer médico os possa prescrever e que o Estado continue a gastar dezenas de milhões na sua comparticipação por ano. Para o médico, a ilação a tirar no momento é que o maior acesso aos antidepressivos tem mitigado os efeitos da crise. "O maior acesso aos ansiolíticos também mas, no curto prazo, no futuro, será problemático."
A crise Álvaro Carvalho conta que, no caso da saúde mental e na procura de avaliar os efeitos da crise, há alguma informação estatística, mas a relação entre crise e mais depressões é, para já, inconclusiva. Pelo menos dados de duas administrações regionais de saúde referentes ao ano passado não puderam ser analisados por não serem fiáveis, refere. Luiz Gamito, presidente do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, reconhece que a percepção que tem sobre o aumento das queixas depressivas é apenas empírica, mas nesse sentido considera pouco surpreendente que as vendas de remédios continuem a aumentar: "Ficaria mais surpreendido se baixassem muito, significaria talvez menos acesso."
Sem dados definitivos, como fica o reforço da prevenção e a oferta de cuidados à população, considerado essencial em períodos de maior fragilidade social? "Temos dados, só não temos todos os dados que desejaríamos. Em termos de prevenção, com dados mais fiáveis poderemos tornar a resposta mais direccionada, algo que hoje ainda não é possível", diz Álvaro Carvalho. Do lado académico, há pelo menos uma evidência para Portugal e Espanha que já foi, inclusive, objecto de uma carta aceite para publicação na revista médica "Lancet" em Agosto: nestes dois países não há evidência de que a subida do desemprego tenha aumentado os casos de suicídio, o que contesta alguns balanços que têm sido feitos sobre o impacto da crise económica na Europa, na saúde, que dá como certa equações como a de que por cada subida de 1% na taxa de desemprego existe um aumento de 0,79% nos suicídios. Ricardo Gusmão e o economista Pedro Pita Barros, em conjunto com um colega espanhol, foram os autores da carta, na qual reflectiam análise de dados até 2011, os disponíveis para já, nos quais sugerem que os dois países poderão ter particularidades que devem ser tidas em conta na hora de preparar intervenções. Até Outubro, o INE divulgará dados sobre suicídios em 2012, que permitirão continuar a análise que os especialistas estão a fazer por região e tendo em conta a evolução do número de desempregados.