8.10.13

Em Roma há um sítio onde os sem-abrigo podem ir só para conversar

Patrícia Carvalho, in Público on-line

Binário 95 é um centro de dia para sem-abrigo, que funciona em articulação com um Help Center na estação ferroviária Termini, na capital italiana, por onde passam milhares de pessoas sem casa.

Eugénio, 65 anos, não acredita que algum dia vá deixar Roma e regressar a casa, na ilha italiana da Sardenha. "Lá vivia muito bem, tenho vergonha de regressar assim", diz. Alto e robusto, com óculos de modelo antigo e sotaque carregado, Eugénio é um dos utentes do Binário 95 (Plataforma 95), um centro de dia para sem-abrigo da capital de Itália, instalado na estação ferroviária Termini, que oferece apoio psicológico e prático na gestão dos problemas dos utentes (incluindo a procura de trabalho e apoio médico), além de wokshops de escrita, cozinha e desenho e espaços de convívio.

O homem é "um caso especial", explica Valentina Di Fato, jornalista que trabalha no jornal sobre sem-abrigo do Binário95, o Shaker, e na web tv do centro. O que o distingue dos outros não é o sotaque, nem sequer ser "muito brincalhão" ou a forma pausada como fala. É que Eugénio já foi utente do Binário95, deixou de o ser e agora está de volta.

"Eu tinha uma vida boa na Sardenha, mas há seis anos decidi vir para Roma, à aventura. Queria mudar de vida", conta Eugénio, no espaço luminoso do Binário95. A aventura não correu bem. Chegou a Roma e não encontrou trabalho, não tinha como pagar uma casa e viu-se a dormir na Cáritas. "Na rua nunca, antes morrer", diz. Daí, encaminharam-no para o Binário95, e passou oito meses como utente do centro de dia. "Então, encontrei trabalho. Passei a ter uma vida normal, mas este ano regressei. Tenho um problema nos olhos e perdi o emprego", diz.

Agora, Eugénio aguarda pela operação aos olhos que - espera - lhe há-de dar, de novo, condições para "encontrar um trabalho" e aguarda também pela reforma. "Quero voltar a ter uma direcção na vida", diz, com um sorriso plácido.

O Binário95 foi criado em 2006, num dos espaços vazios da estação Termini. Ampliado em 2009, funciona em estreita colaboração com o Help Center da estação - um dos quinze instalados em estações de comboio do país, que prestam apoio aos sem-abrigo e que foram criados pela Ferrovia do Estado, em parceria com a associação nacional de municípios italiana e a cooperativa social Europe Consulting, que também gere o Binário 95 (ver texto nestas páginas). O elevado número de sem-abrigo nas estações italianas esteve na origem da criação destes centros, e também na base do projecto Violence in Transit, que envolveu a estação de S. Bento, no Porto, e cujas conclusões foram apresentadas esta semana, em Roma.

A política do Help Center e do Binário95 é ajudar, mas recusando o assistencialismo. Quando chegam ao Binário 95, os sem-abrigo expõem os problemas que têm - precisam de um sítio para dormir, trabalho, uma consulta -, e com os técnicos desenham um projecto para os resolver. Firmam um contrato e são chamados a participar na solução. Se precisam de uma consulta, os técnicos dizem onde podem consegui-la, mas se o sem-abrigo pede "então, marquem-na", a resposta que recebe é: "Não, marca-a tu."

Daniele Lucaroni, 58 anos, não larga o computador. Ele é dos que está no Binário "todos os dias", entre as 9h e as 17h, garante Valentina. Daniele trabalhava com os pais e resume o seu percurso em poucas palavras: "Eles morreram, foi-se o negócio, foi-se a casa e a mulher." Há quase vinte anos viu-se na rua. "Arranjei uns trabalhos esporádicos e dormia debaixo da ponte", diz, na sua forma peculiar de quem parece mastigar enquanto fala.

Uma "rede informal de amigos" foi-o ajudando e, quando ficou doente, foram eles que o encaminharam para a Cáritas. É lá que dorme e come desde 2005. No Binário 95 está desde 2007 e hoje é um dos três utentes que recebem uma pequena quantia para trabalhar no jornal. Tem onde dormir, onde comer e com que se ocupar. Mas continua a fazer-lhe falta uma casa. "Falta um espaço de intimidade", diz.

Se não está a escrever para o jornal, há-de estar a dar corpo ao livro que anda a escrever sobre a sua vida. Não é Daniele que o revela, nem quem fala primeiro da sua "paixão pela escrita". É Valentina que não perde uma oportunidade para elogiar aqueles com quem partilha o dia. Também é ela que diz que Eugénio é "um verdadeiro chef", deixando todos com água na boca, quando, ao domingo, cozinha especialidades sardenhas. E é ela que aponta o desenho colorido na parede e conta que foi feito por Carlo.

Carlo, 67 anos, descreve-se como "um velho, desdentado e bruto", mas Valentina prefere contar como ele ganhou um prémio de desenho, num concurso para os utentes, que o levou numa viagem de três dias a Paris. "Ele é um artista", sorri. Carlo encolhe os ombros, ou melhor, sacode-os. "Sou uma pessoa zangada. Já o era um pouco em pequeno e o que aconteceu deixou-me mais", diz. E o que lhe aconteceu foi a rua.

Sempre teve trabalhos incertos e, quando os pais morreram, não conseguiu continuar a pagar a renda. Dorme na Cáritas há 16 anos. No Binário 95 tem o convívio e o "apoio psicológico" que o ajuda a "ter motivação", mas não tem ilusões. "Para uma pessoa como eu já não há mudanças. Acabou", diz. E que cidade é Roma para quem não tem casa? "Há um velho filme italiano que se chama Roma, Cidade Aberta [de Roberto Rossellini, 1945], mas para os sem-abrigo está tudo fechado. Pode haver alguma ajuda, mas de resto, não há nada", diz.