por Susana Madureira Martins, in RR
Isabel deixou de fazer férias fora, Lucinda já não compra livros, mas para Sofia as decisões são muito mais básicas: ou tem dinheiro para a comida ou para a farmácia. Três histórias de como se vive e se prepara a reforma em Portugal, no Inverno de 2014.
“Não se mudam assim as regras a meio do jogo”, desabafa Lucinda Cavaco, que ainda está à espera de se reformar. Mas, para Isabel Leal, as regras mudaram já depois de o jogo acabar.
A Renascença dá esta quarta-feira início à iniciativa “Três anos de ‘troika’: e agora?”. Quatro ministros responsáveis por áreas essenciais vão ser entrevistados em parceria com o “Jornal de Negócios”. Esta manhã, o olhar é para a situação dos pensionistas.
Isabel tem 64 anos e está reformada há 12. Garante que não se reformou porque quis, mas porque a situação lhe foi praticamente imposta por uma portaria que então atingiu os trabalhadores dos portos nacionais. Reconhece que saiu com uma reforma confortável de 1900 euros, mas a austeridade foi-lhe comendo aquilo a que considera ter direito.
“Devo ter perdido à volta de quatro mil euros em 2013. Entre subsídios de férias e Natal que não recebi e aumentos de IRS e contribuição extraordinária de solidariedade devo ter ultrapassado os quatro mil euros de cortes”, faz as contas.
Recebe agora 1440 euros, o que levou a mudanças de hábitos. “Não fazemos uma vida de luxo, como nunca fizemos, mas por vezes deslocávamo-nos uma semana para Espanha em férias”, diz.
Agora, quando muito, fazem férias cá dentro. E mesmo assim tentam só encher o depósito do carro uma vez por mês. Até porque Isabel, como muitos reformados, ainda ajuda a família: “Tenho uma filha desempregada em casa, tenho uma irmã que tenho ajudado muito, com 60 anos, também desempregada.”
“Adorava comprar livros…”
Ainda não está reformada, mas Lucinda Cavaco, professora de português e francês, também já deixou de fazer algumas das coisas que mais gostava.
“Adorava comprar livros. Ia ao cinema com mais frequência, ia jantar fora com amigos”, lembra, adiantando que passou a ser frequentadora das bibliotecas municipais.
“Mas não é a mesma coisa”, remata esta professora do ensino público que acabou de pedir a rescisão do contrato. Abandona o ensino público porque já não aguenta a profissão, desmotivada com o próprio meio escolar e, sobretudo, desmotivada com os constantes cortes.
A resposta há-de chegar no final deste mês. Tem 56 anos e, em princípio, ficará dez à espera da reforma. Mas será que terá mesmo a reforma à espera?
“Andei a descontar 30 anos e, dos descontos que fiz, acho que tenho o direito de exigir uma reforma condigna. Não se mudam assim as regras a meio do jogo”, responde, lembrando que todos os anos tem tido diminuição do ordenado: “Neste momento, estou a levar para casa menos 600 euros do que levava”.
Sobreviver “é muito difícil”
Se para Isabel ou Lucinda a questão pode ser deixar de fazer algumas coisas de que gostavam, para Sofia Tibúrcio a questão é sobreviver. A decisão de todos os meses é entre a comida e a farmácia.
Sofia tem 78 anos, está reformada desde os 65, começou a trabalhar a dias aos 20 anos a ganhar dois escudos. Agora, ao fim do mês leva uma reforma de 370 euros para casa.
Sobreviver “é muito difícil”, afirma Sofia, desfiando as suas contas: “ Estou a pagar 81 euros, 15 de renda de casa, depois tenho água, luz e gás… e já não falo do telefone, que é uma sobrinha do meu marido que está a pagar.”
Acrescente-se a farmácia. Sofia tem um problema de coluna e gasta boa parte dos 370 euros de reforma na farmácia.
“Se tiver dinheiro para comer, não tenho dinheiro para a farmácia”, afirma Sofia. O que lhe vale é ser conhecida na farmácia. Chega lá e pede se lhe podem fiar os remédios, que quando receber a reforma vai lá pagar. Como a conhecem, nunca lhe negaram os medicamentos. “Graças a Deus agora não devo lá nada”, suspira.
Balanço feito, se há para a farmácia, falta para a mesa. “Fiz uma canja um destes dias e é isso que acabamos de comer hoje ao almoço. Deu para anteontem, ontem e hoje. Ao jantar é um bocadinho de chá com um bocadinho de pão…”, porque mais “não há. Não há mesmo”.
Assim se vive em Portugal no Inverno de 2014.
O ministro da Solidariedade e Segurança Social é entrevistado hoje, pouco depois das 23h00, na Renascença, numa parceria com o “Jornal de Negócios”.