Luísa Oliveira e Mário David Campos*, in Visão
Pode faltar emprego, dinheiro e casa. Pode até haver pouca comida na mesa. Mas se existir apoio de familiares nos momentos mais angustiantes, a vida vai-se levando com ânimo. Retratos da entreajuda entre gerações, reforçada em tempos de crise
Graça e João Nunes nunca tinham ouvido falar de planos de resgate ou de ajustamento.
Até ao dia em que foram obrigados a pô-los em prática dentro da sua própria casa. Em menos de um ano, o T3 no bairro do Ingote, nos arredores de Coimbra, onde viviam com um dos filhos, tornou-se demasiado pequeno para acolher o resto da descendência. Aos poucos, Célia, 28 anos, Filipe, 33, e Margarida, 39, deixaram de ter condições para suportar os custos da independência e foram obrigados a regressar a casa dos pais e, desta vez, acompanhados.
Sem perder o sorriso, Graça encolheu o espaço para os seus parcos haveres e recebeu a família de braços abertos. "São meus filhos, não podia deixá-los na rua. Além disso, as crianças não têm culpa, não é?", pergunta, sem esperar resposta.
Privacidade passou a ser palavra sem sentido naquele rés do chão de uma das mais velhas urbanizações sociais de Coimbra, situada num planalto com vista privilegiada da cidade. O casal manteve o quarto, ainda que em muitas noites conte com o filho de Célia, de 2 anos, como companhia.
Os outros ajeitam-se como conseguem: as irmãs Margarida e Célia ficam com Ana Beatriz, de 9 anos, num dos quartos; os primos Hugo, 14, e Diogo, 8, repartem outro dos espaços com o tio Paulo, enquanto Filipe se instala no sofá da sala. Hugo e Ana Beatriz já sentiram alguns efeitos da falta de um cantinho para estudar: reprovaram no ano letivo passado.
Um milhão de dependentes
Esta família retrata um Portugal que gasta apenas 1,5% do PIB em medidas de apoio familiar, contra 2,3% da média da OCDE (dados do Observatório das Políticas de Família). Os números tornam-se implacáveis quando comparados com os de há três anos: existem menos 46 342 famílias a receber o rendimento social de inserção (RSI) e 546 mil crianças perderam o direito ao abono.
O complemento solidário para idosos também já deixa muitos de fora. Por outro lado, a nova lei das rendas impôs montantes incomportáveis e as últimas notícias do desemprego revelaram valores acima dos 15 por cento. Resultado: são menos as famílias com apoios e, quando os conseguem, recebem menos. O acesso a qualquer subsídio está também muito mais dificultado. Tudo isto tem efeitos nefastos, numa altura em que as dificuldades batem à porta de quem menos se espera.
No primeiro semestre de 2013, foram devolvidas aos bancos 1 346 casas um terço destas nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Em 2011 e 2012, a situação foi pior (7 mil em 2011 e 5 500 no ano seguinte), porque agora nem os bancos querem os apartamentos livres à força.
Não é de estranhar, pois, que no último Censos já houvesse 10,3% de adultos a cargo de familiares, na sequência de divórcio, perda de casa ou posto de trabalho (ou até de várias situações ao mesmo tempo). Quer isso dizer que um milhão de portugueses não tem condições para sustentar a sua independência.
E quem não conta com apoio dos familiares, geralmente vai viver na rua.
Queres fiar? Toma!
Grata aos pais pelo acolhimento, Célia reparte o tempo entre o trabalho por turnos, num lar de terceira idade, e as horas extra, num café. O ordenado mínimo não chegava para pagar os 325 euros da renda de casa, a que se somavam as despesas do dia a dia.
"Até o abono de família e o subsídio escolar da miúda me tiraram. Era pouco mas ajudava a abater os 180 euros mensais que gasto em medicação para a asma do Rodrigo." Célia conta agora com a ajuda da mãe, empregada de limpeza nos Hospitais da Universidade de Coimbra. As duas coordenam os turnos para não estarem de serviço às mesmas horas e conseguirem alternar-se nos cuidados à criança, quando esta não está na creche.
Mas a contabilidade caseira de Graça, 55 anos, e João, 60, alterou-se de forma drástica com o divórcio do filho Filipe, que trouxe também algumas dívidas os pais foram forçados a assumi-las, por serem fiadores.
O ordenado mínimo de ambos começou a ser insuficiente para tanta conta e as prestações da casa começaram a falhar. "Tinha de optar entre pagá-las e dar de comer aos meus filhos e netos", justifica Graça, com um encolher de ombros. Tudo o que o casal ganha acima do ordenado mínimo é penhorado.
"Não recebemos subsídios de Natal e de férias, nem sequer o reembolso do IRS", resigna-se Graça, que logo reage a um mimo do pequeno Rodrigo, voltando a abrir um sorriso. "Não há nada que pague isto. E a vida vai recompor-se, tenho a certeza." As penhoras de pensões de reforma, tanto da Segurança Social como da Caixa Geral de Aposentações, têm vindo a aumentar mais 17% do que no ano passado. Muitos são idosos que serviram de fiadores aos filhos e netos como Graça e João e agora têm de responsabilizar-se pelos incumprimentos destes, que falharam pagamentos devido ao desemprego, aos cortes sucessivos e ao aumento do custo de vida.
Pobrezinha, mas bem apoiada
Longe vão os tempos em que Isabel Rocha, 36 anos, vivia em sua casa, com o marido, perto de Alverca. Entretanto, entregou o apartamento ao banco, divorciou-se e passou a partilhar um T2, na Póvoa de Santo Adrião, com a mãe, Maria Glória, 59 anos, e as duas filhas, Bruna e Bárbara, de 11 e 7 anos. O marido era ajudante de eletricista e ela ia tendo uns trabalhinhos, ora numa pizaria ora como ama. Na última gravidez teve de ficar de cama e nunca mais trabalhou.
Pelo meio, "ganhou" uma depressão que lhe custa 40 euros por mês em medicamentos.
Depois, o pai das filhas também ficou sem trabalho. Valem-lhe as ajudas dos amigos e da paróquia, onde foi pedir comida garantem uma refeição diária aos dias de semana. "Não temos comer de luxo, mas não passamos fome", assegura Isabel. "Ainda ontem o pai delas veio cá e fez-lhes umas comprinhas." Entretanto, Bárbara pede para comer uma sande, com as iguarias que ele deixou no frigorífico.
Maria Glória está acamada, porque foi operada ao colo do fémur e Isabel serve-lhe de apoio. "Como a minha mãe me deu abrigo se não fosse ela não sei o que seria de nós e não posso pagar-lhe, ajudo-a no que é preciso.
Chocamos um bocadinho, pois temos opiniões diferente, mas as meninas estão muito habituadas a ela." É nas limpezas e arrumações que o atrito mais frequentemente surge: "Faz-me muita confusão que a Isabel ainda tenha a mobília de casada empacotada na sala." No entanto, ajudar os seus está-lhe nos genes. "Sabe como me chamam? Mãe-galinha", conta, enquanto atende, na cama a que está presa, as chamadas dos seus outros dois filhos. "Às vezes, mais vale ser pobrezinha, mas darmo-nos todos bem."
Para que lado tombar?
A sociedade industrial, urbanística e migratória, teve um efeito de fratura nas famílias, que foram vítimas do isolamento geográfico, mesmo dentro das cidades uma grande ameaça à coesão familiar e à solidariedade.
Mas, atualmente, o apoio que as pessoas com maiores necessidades encontram nos familiares mais diretos movimenta a sociedade no sentido oposto. "A união faz a força e as famílias estão a aproximar-se para sobreviverem.
Há a tendência de se porem à sombra dos mais velhos, da árvore que tem mais raízes e força", nota Maria Joaquina Madeira, 67 anos, assistente social e coordenadora do Ano Europeu do Envelhecimento Ativo e Ajuda entre Gerações.
Perante a adversidade, o sistema ganha com a entreajuda, mas se os laços afetivos nunca foram bons, podem explodir relacionamentos perversos, assentes na culpa e no ressentimento, como confirma a psicóloga Maria João Fitas. Nas suas consultas, ouve frequentemente desabafos: "Não tenho vontade de tratar dele(a), mas faço-o só para não me sentir má pessoa." Estes são casos de risco, que podem culminar em maus-tratos.
A assistente social também reconhece que chegámos a uma encruzilhada, onde há a possibilidade de se tombar para qualquer um dos lados. "O movimento a que assistimos é de aproximação, mas o que isso significa em termos de qualidade de vida dos seus membros ainda constitui uma incógnita.
Será uma oportunidade para estreitar laços ou um stresse acrescido?" Se a aproximação for apenas por necessidade, e não por amor ou vontade, pode não resultar bem.
Famílias-acordeão
Por vezes, as raízes das árvores mais fortes também quebram. Foi o caso do pai de Pedro Duarte, 24 anos, que trabalhava na construção civil e vivia com a mulher em Chaves. Só se viam uma vez por ano, mas assim que ficou sem emprego, procurou a ajuda do filho, que então morava com a mulher e dois filhos, nos arredores de Lisboa. "Ficou um ano em nossa casa e correu muito bem. Para mim, foi bastante agradável tê-lo cá. E ainda ajudou a tomar conta das crianças." Para o pai, mais habituado a dar do que a receber, pareceu mais difícil. Entretanto, a história teve um desenrolar positivo o pai de Pedro emigrou para a Argélia com um contrato de trabalho. Nem por isso a entreajuda esmoreceu. Agora é ele quem manda algum dinheiro para engordar o orçamento familiar do filho que lhe deu a mão. E, sempre que vem a Portugal, continua a ficar no quarto da casa que o acolheu num dos momentos de maior agonia.
A terapeuta familiar Ana Gomes identifica, atualmente, as "famílias-acordeão", compostas por agregados que se enchem e esvaziam à medida das mudanças. "Com rendimentos mais baixos, mas superiores aos elegíveis para receber subsídios estatais, há famílias que são heroínas na capacidade de manter uma vida própria, sem desistir", nota a especialista.
Todos debaixo da asa
Por força das circunstâncias, a crise do ninho vazio quando os filhos vão à sua vida está a ser suplantada pela dos ninhos cheios, ou até sobrelotados. Se não, faça-se a conta aos moradores da casa de Ausenda Belo, 58 anos, no bairro social da Bela Vista, em Lisboa: um casal, cinco filhos e seis netos. Mesmo em frente, vive outro filho com a mulher e duas meninas. "A minha nora Ana esteve internada no hospital durante um mês e eu fui para lá dormir com as crianças", conta, sublinhando a forma como todos se entendem às mil maravilhas.
Ainda há outra filha que tem uma casa no Lumiar ("O que eu chorei quando ela foi para lá morar..."). Ausenda gostava mesmo era de ter todos debaixo da asa: "São meus netos, onde eu estiver, eles estão. Até dizem que se os pais saírem de minha casa, eles ficam." Vale-lhes a habitação camarária ter cinco quartos, porque com a 4.ª classe, os empregos que arranjaram (lavar vidros e limpezas) nunca deram para conquistar a independência.
"Foram ficando", diz Ausenda, resignada. Aos poucos, até essas precárias ocupações acabaram. Hoje, apesar de estarem todos inscritos no centro de emprego, não são chamados para nada. Vivem com os 390 euros do RSI. A renda da casa que subiu brutalmente com as atualizações não é paga há cinco meses.
"Somos muito unidos. Quando um tem qualquer coisa dá logo ao outro e assim vamo-nos ajudando. Não passamos fome.
Os meus netos podem abrir o frigorífico quando quiserem que há lá sempre alguma coisa para comerem. E é disso que mais me orgulho." Claro que para fazer face a tanta boca tem de recorrer a algumas ajudas externas.
Não se pense que, por serem tantos, existe confusão dentro de casa. Quando os mais reguilas tentam pisar o risco, há sempre um adulto por perto para lhes chamar a atenção todos estão habilitados a educá-los. A escola não corre lá muito bem, mas vai-se fazendo. No tempo que sobra das aulas, os miúdos ainda despacham recados à avó. E as limpezas ficam a cargo das mulheres do clã.
Paz e amor
Nas famílias com um percurso complicado, sem suporte nenhum, verifica-se um agravamento evidente da situação, no caso de perda da casa, por exemplo. "As pessoas que já tinham dificuldades a nível económico e uma vida difícil são as primeiras a perder a autonomia e a independência em contexto de crise", nota Carina Dantas, 37 anos, da Cáritas de Coimbra.
A pobreza envergonhada também é uma realidade a crescer e que preocupa quem anda no terreno. São casos de pessoas que já viveram bem e que, de repente, ficam com muito pouco num primeiro momento, têm pudor de assumir que precisam de auxílio, mas com o agravar desta crise, já o procuram.
Para o músico Pedro de Faro, 50 anos, as voltas da vida gerem-se com engenho e arte. O ex-UHF vive na casa de família, com a mãe Lurdes, 84 anos, e os dois filhos, João e Luís, de 23 e 25 anos, ambos sem trabalho fixo. Contar com as ajudas de amigos, quando é preciso, e fazer permutas de saberes, a nível local, não os envergonha. Bem pelo contrário, traz-lhes paz de espírito: "Nós, e muitas famílias, estamos como nos tempos bíblicos, a voltar às raízes, vivendo um dia de cada vez." Depois do desemprego, há dez anos, Pedro entrou numa fase de desalento profundo, da qual saiu com o apoio moral da família, incluindo a ex-mulher. "Sei que o que tenho agora, posso deixar de ter amanhã." Hoje, dá aulas de música e colabora com uma associação cultural, juntamente com os filhos, que herdaram a sua veia artística.
Eles tentam, por enquanto em vão, encontrar trabalho nas áreas em que se formaram (marketing e publicidade e design gráfico). Sem certezas quanto ao futuro, os rapazes recebem alguma ajuda financeira do pai e da mãe, fazem biscates pontuais e, pelo meio, algumas tarefas pro bono, de âmbito comunitário. "Paz e amor, faz-se o possível", acrescenta a avó, contente por tê-los na sua companhia, embora incansável na luta antitabágica que empreende diariamente contra os três homens da casa.
"Os rituais de uns não atrapalham os dos outros", garantem, sentados na sala de estar, onde se veem bibelôs modernos e antigos, um computador de velha geração e vários instrumentos musicais. Enquanto mostra a casa, no centro de Oeiras, Pedro vai fazendo o ponto da situação: "O esquentador foi pago a prestações, tal como o carro, e a minha mãe, por enquanto, vai tapando os buracos da nossa insuficiência económica."
Voltar à casa da partida
Rosário Barata, 60 anos, é responsável pelos beneficiários da Refood, uma associação que aproveita os desperdícios dos restaurantes lisboetas para alimentar quem não tem o que pôr na mesa. Quando fez um levantamento das necessidades, na vizinhança da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, onde se situa a sede, encontrou alguns casos diferentes do habitual. A esses, os voluntários da associação levavam-lhes o jantar mesmo que o não tivessem pedido. Rosário recorda uma família em particular, que, certo dia, lhes disse não querer mais comida, que, quando as coisas piorassem, iria bater à porta da Refood.
"A mãe vivia na Conde Valbom, com os três filhos e um neto. Eram todos arquitetos e estavam todos desempregados. Não somos elitistas, mas gostávamos de ter capacidade para lidar melhor com estas situações." Situações que só não se transformam em histórias mais dramáticas porque a família está lá, a apoiar, dentro ou fora de portas.
Frederico Cantante, investigador do Observatório das Desigualdades, regista que "mesmo com qualificações, 40% dos jovens estão desempregados, outros têm empregos precários ou recebem baixos salários, e os pais são boias a que se agarram, mesmo quando não estão a morar com eles." É assim, agarrada à boia que os pais lhe lançam, que Mafalda Galvão Teles tem sobrevivido desde que deixou de ter direito ao subsídio de desemprego. Ainda não se mudou definitivamente para o ninho paternal, mas, quando o banco a notificar de que tem de sair de sua casa, é para lá que vai.
Aos 44 anos, solteira e sem filhos, está agora no período mais complicado de uma carreira profissional que começou aos 20 anos. "Saí de casa porque queria a minha independência e sempre trabalhei, mesmo enquanto estudei Relações e Cooperação Internacionais." De ajudante num clube de vídeo até "ao primeiro emprego a sério, com descontos e tudo", num health club, e, depois, de "menina dos faxes" numa empresa têxtil a comercial, de "aparcadora de carros" numa firma de reparações automóveis até administrativa, Mafalda fez um pouco de tudo. Desempregada desde 2009, a única prestação social que recebe atualmente são os 178 euros de RSI, quantia que dá "para pagar água, luz e pouco mais". São os pais que lhe asseguram a alimentação, já há algum tempo.
No pequeno T1, no Padrão da Légua, em Matosinhos, vai aproveitando os raios de sol de outono, na companhia da cadela que adotou.
Com a ajuda da advogada da Segurança Social, Mafalda conseguiu que o banco considerasse liquidada a dívida com a entrega do imóvel. "Custa-me. Afinal foram 17 anos que aqui passei, era a minha casinha." Por enquanto, vai aproveitando o seu espaço, ainda que já tenha uma das malas feitas e o resto quase pronto a embalar. No fim da viagem, terá à sua espera os pais, já reformados, e uma avó de 101 anos. Pelo menos carinho não lhe há de faltar.
*com Clara Soares