27.5.20

O vírus chegou ao Bairro da Jamaica: “Se sairmos daqui, para onde vamos?”

Cristiana Faria Moreira (Texto) e Rui Gaudêncio (Fotografia), in Público on-line

O novo coronavírus chegou ao Bairro da Jamaica e já infectou 16 pessoas. A Câmara do Seixal pede “mais informação” ao Governo para conter surtos. Os infectados deverão estar a cumprir o isolamento nas suas precárias casas e, segundo diz a junta de freguesia, a PSP passa uma vez por dia para verificar se estão a cumpri-lo.

Pulquéria Neto não sabe o que é esse luxo de poder trabalhar de casa ou de fazer uma quarentena voluntária. É natural de São Tomé e Príncipe e faz daquele bairro casa há 17 anos, quando chegou para se “aventurar”. Agora, enfrenta mais uma aventura, sobretudo porque a sua vida se recheia de ingredientes que a tornam um alvo fácil ao vírus que anda por aí. Esta mulher de 62 anos, diabética, sai todos os dias da sua casa numa das torres de tijolos do Bairro da Jamaica, conhecido também como Vale de Chícharos, ​por volta das 5h da manhã para ir apanhar o autocarro, muitas vezes lotado. Vai fazer limpezas em Lisboa ou nos municípios vizinhos. Trabalha até às 9h. Depois, às 17h, “toda equipada mesmo”, lança-se a mais três horas de trabalho. Entra em casa já bem para lá das nove da noite.

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Nesta terça-feira, andou no meio do vírus. Esteve a limpar a mesquita de Lisboa, onde estão a ser acolhidos requerentes de asilo infectados com o novo coronavírus, mas sem grandes sintomas. Agora, foi a vez de o vírus lhe chegar ao bairro. Também nesta terça, a directora-geral da Saúde, Graças Freitas, confirmou na habitual conferência de imprensa de balanço da situação epidemiológica do país que há 16 casos de infecção pelo novo coronavírus no Bairro da Jamaica.

A informação apanhou desprevenida a Câmara do Seixal, que “lamenta que essa informação não tenha sido facultada ao município e às instituições que estão na linha da frente e que depois seja conhecida através da comunicação social”. O município, liderado pelo comunista Joaquim Santos, disse já ao final da tarde, em comunicado, que solicitou à Unidade de Saúde Pública de Almada e Seixal “informação sobre a origem dos novos casos que surgem no concelho e a sua evolução, de modo a poder ajudar na sua contenção”. E solicitou “com urgência” uma reunião à ministra da Saúde e à Unidade de Saúde Pública.
Mal se chega ao bairro há um ambiente de estranha acalmia, fora a música alta que ecoa dos cafés abertos. É por ali que se concentram os jovens do bairro. A vida vive-se muito na rua, no convívio, ao ritmo dessa música. Talvez porque as condições onde ainda vivem 74 famílias, em prédio inacabados, não permitam o conforto que apela à permanência em casa. Há décadas que aquele bairro, constituído em grande parte por imigrantes dos PALOP, serve de habitação a centenas de famílias que foram construindo as suas casas em cima de estruturas inacabadas. O seu realojamento está em curso.

Os moradores do Bairro da Jamaica começaram a ser realojados em Dezembro de 2018, mas ainda faltam 74 famílias
Pulquéria avisa para ninguém se deixar levar por esta aparente calma. “Venha cá sábado ou domingo para ver como isto fica. Nós aqui não somos muito, mas vêm pessoas de fora.” Não é que a notícia os tenha apanhado de surpresa, mas os moradores desconheciam o número de vizinhos infectados, nem sabem onde param. A empregada de limpeza soube através da câmara. “Soube há coisa de 15 dias quando a câmara veio distribuir máscaras.”
Nos dias 16 e 18 de Maio, equipas da autarquia e da PSP estiveram no bairro a distribuir máscaras aos moradores, já depois de se saber da existência de alguns casos de moradores que teriam contraído o vírus numa festa na Aroeira, em Almada, no início de Maio, diz a autarquia. Pulquéria fez a sua parte e comprou lixívia para desinfectar as escadas de madeira que ajudam a sustentar por dentro o esqueleto do prédio. Tem receio, mas a vida não a deixa parar. “As contas pagam-se como?”

“Isto é preocupante”
O presidente da associação de moradores, Salimo Farã, de 51 anos, diz desconhecer o número de infectados e onde estão estas pessoas. A câmara também não sabe. Deverão estar nas suas precárias casas. Ao PÚBLICO, fonte da autarquia esclarece que não foi solicitado pelas autoridades de saúde qualquer espaço para acolher os infectados. A autarquia criou centros de acolhimento temporário para doentes com covid-19 e para pessoas sem abrigo que poderiam ser utilizadas para esse efeito, mas que não foram solicitadas.

Para Salimo Farã, o grande problema do bairro foram os cafés que se mantiveram abertos, mesmo em estado de emergência. “As famílias estão em casa. Quem vai para os cafés não mora aqui. Isto é preocupante”, nota o morador, ao telefone, porque está de baixa médica e a cumprir o seu isolamento voluntário. “Todos dos fins-de-semana aparecem aqui bandos de pessoas a fazer sardinhadas, alguns sem máscara. A lei é para todos, temos de cumprir. Porque é que a autoridade não vem aqui?”, questiona.

Salimo diz que pediu ajuda à junta de freguesia, à câmara e à Protecção Civil para tentar mitigar estes ajuntamentos, mas que ninguém apareceu. A Embaixada de São Tomé fez-lhe chegar uma circular com recomendações de segurança, que andou a colar pelo bairro. Pulquéria nota que não duraram muito tempo, que foram todas arrancadas.

Há muito tempo que o presidente da Junta de Freguesia da Amora, Manuel Araújo, está preocupado com este e com outros bairros sociais da freguesia, diz. “É difícil as pessoas ficarem confinadas em casa pelas condições que têm e pelos próprios hábitos. São pessoas que estão habituadas a conviver.” Da informação de que dispõe, que também não é muita, lamenta, as pessoas infectadas “estão confinadas em casa” e “a PSP faz uma passagem pelas casas uma vez por dia” para assegurar que estão a cumprir o isolamento.
O cenário e a falta de informação assustam um morador de 27 anos, que ali vive desde criança e não se quis identificar por temer represálias, sobretudo pelo filho pequenino que tem em casa. Ele sugere que deveriam ser feitos testes à covid-19 a todos os moradores, para que pudessem viver com um pouco mais de liberdade. “Era muito rápido, porta a porta. É uma zona sem muita segurança, com muita gente... As pessoas fazem o seu dia-a-dia, tomam as suas medidas, mas não sabem ao certo. Saem daqui, vão ao supermercado e contagiam.”

Ele aguarda ser realojado, um processo que a câmara queria ter resolvido até ao final do ano, mas que a pandemia poderá atrasar. Tem saído pouco de casa porque não se sente seguro. Nem pelo vírus nem pela segurança. “Eu luto para sair daqui”, atira o jovem. Mas, nesse entretanto, o futuro tem sido sempre adiado. “Ninguém pediu para estar aqui, mas saindo daqui, para onde vamos?”