8.5.14

Quase um quarto dos portugueses continua sem conseguir pagar despesas básicas

Ana Rute Silva, in Público on-line

Três anos de troika trouxeram de volta a marmita, deram impulso às promoções e houve quem regressasse aos campos para cultivar a própria comida. Com um apertado orçamento familiar, os consumidores jogaram à defesa.

O bairro é pobre. Daqueles de prédios altos brancos, a precisar de pintura. Com carros abandonados, um ar de desleixo, mas com escola básica e clube recreativo. Ouvem-se homens a conversar e, na paragem, uma fila de moradores aguarda pelo autocarro. Ao fundo da rua, há uma imensidão de terreno onde Manuel Gomes está a regar favas de mangueira em punho. Na Quinta da Princesa, no Seixal, nascem ervilhas, milho, feijão ou cana-de-açúcar, cultivados por cerca de 120 famílias, pelos cálculos da câmara municipal.

Nos últimos anos, a procura por áreas para cultivo agrícola aumentou, não só aqui, como em todo o concelho. Susana Lança, responsável pelo projecto Rede de Hortas Urbanas do Município do Seixal, explica este fenómeno pelas dificuldades económicas, motivadas pela crise. “As famílias estão no limite em termos de esforço financeiro e a possibilidade de terem acesso a um espaço para cultivarem os seus próprios alimentos é uma solução cada vez mais afirmada pelos munícipes”, adianta. Manuel Gomes, 51 anos, fez da sua horta um lugar de terapia. Tem sido a sua pequena mercearia de bairro nos últimos anos, sobretudo, desde que ficou sem emprego na construção civil. “Ajuda muito a pôr comida na mesa”, vai contando, enquanto rega. Na Quinta da Princesa, a procura é tal que o bairro se organizou com a ajuda da câmara para criar a uma cooperativa agrícola e conseguir organizar melhor os nove hectares já cultivados.

Mariano Dias e Domingos Borges, membros da comissão instaladora, garantem que as pessoas estão a cultivar mais. Por mês, Domingos consegue levar para casa, pelo menos, um saco com legumes. “Ontem precisávamos de cebola para o jantar e eu vim aqui buscar”, exemplifica este trabalhador da construção civil, no desemprego.

Aqui a crise sempre foi uma presença constante. Mas nos últimos três anos, marcados pela presença da troika do Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu, a sombra ficou maior. Em Portugal, o desemprego de longa duração já afecta meio milhão de pessoas. A taxa de emprego está em níveis de 1980 (51,1%) e, em três anos de assistência financeira, a economia destruiu 332 mil postos de trabalho. O contexto económico e as medidas de austeridade fizeram aumentar a percentagem de pessoas que admite não ter capacidade financeira para cobrir as despesas básicas. De acordo com a empresa de estudos de mercado Kantar Worldpanel, em 2010, 19,2% dos consumidores diziam sofrer com o impacto da crise. Em 2011, eram já 22% os que não tinham dinheiro para as necessidades básicas. Em 2012, chegaram aos 27%. E aos 24,7% no ano seguinte.

Classe média ajusta gastos
Nem todos reagiram da mesma forma à austeridade. Sofreram mais ou menos consoante a sua situação social e profissional. No início, a classe média e, sobretudo, quem conseguiu manter o emprego, ajustou. "Fizeram cortes mais fáceis e e óbvios: reduziram bens supérfluos, no excesso na roupa, nos almoços fora, nas viagens”, ilustra Clara Cardoso, sócia da Return on Ideias, consultora que, juntamente com a Ipsos Apeme e a Augusto Mateus e Associados, analisa de forma permanente o comportamento dos consumidores. Os portugueses jogaram à defesa, mostraram mais ponderação, mas, em 2010, ainda “acreditavam que a crise passaria sem que nada de radical lhes fosse exigido. Enganaram-se”, continua a especialista, que exclui desta análise os que já sentiam na pele os impactos devido, sobretudo, ao desemprego.

A prudência reflectiu-se no maior planeamento das compras ou na redução de visitas aos centros comerciais. Mas foi a partir do momento em que a troika e o Governo assinaram o memorando de entendimento, em Maio de 2011, que se sentiu “com grande profundidade o impacto da crise”, diz, por seu lado, José António Rousseau, professor e consultor. “Fundamentalmente pela questão psicológica, porque a redução dos rendimentos não foi de imediato, foi acontecendo”, sustenta.

Ainda com Sócrates na liderança, o ano começou com um aumento da taxa normal de IVA de 21 para 23% que teve um efeito directo na factura do supermercado: mais 38 euros, pelas contas feitas, na altura, pela Kantar. No primeiro semestre, 47% dos portugueses não compraram uma única peça de roupa e desenharam-se três estratégias para contornar a crise: aproveitar as promoções, comprar mais marcas da distribuição e substituir um produto por outro semelhante (carne de vaca por frango, por exemplo). Em 2012, a alteração na lista de bens com IVA – um compromisso do Governo de Passos Coelho com a troika - provocou uma das maiores mudanças: a restauração passou a ter de aplicar um imposto de 23%, em vez de 13%. E, por isso, levar comida para o trabalho passou a ser uma estratégia seguida por 40% dos portugueses (29% em 2009).