Miguel Morgado, in Sapo25
A Comunidade Viva e Paz ajuda os sem-abrigo, que clamam que não os abandonem nestes dias de distanciamento social. Lisboa está deserta, sem viva alma. A não ser quem vive nas ruas num T0 de cartão, ao lado de carros de supermercado, enfiados em sacos cama, encostados a paredes, colados à linha férrea, debaixo de pontes e palas. Escutámos o Henrique, que foi médico e o Henrique que quer ser Uber. E a Maria, que conversa com Deus.
A sede da instituição Comunidade Viva e Paz (CVP), rua R. Domingos Bontempo 7, em Lisboa, quatro carrinhas são abastecidas com refeições. Divididas pelas letras de A a D, são preparadas para quatro rondas noturnas no apoio aos sem-abrigo.
Gestos mecânicos feitos por quem ali está voluntariamente. Dobram caixas de cartão, montam cestos, colocam sacos com comida e bebida, e transportam o “takeaway” para as viaturas. Há novos voluntários. “Viemos por causa de uma reportagem onde se falou que havia falta de apoios”, afirma Alexandre Vieira. “Achámos que era a altura ideal para arregaçar mangas e dar o nosso contributo”, refere Catarina Almeida.
Nuno Fraga, voluntário há mais de 10 anos, explica o grito de alerta. Com a declaração do estado de emergência a cidade fechou-se em si mesmo. “Algumas instituições não estavam a ir para a rua. Estávamos todos focados no Eu e em estar em casa de quarentena”, recorda. “Num dia normal, os sem-abrigo ganhavam uns trocos a arrumarem uns carros, teriam ajuda de supermercados, restaurantes, da Refood ... de um momento para o outro, tudo isso parou. Partilhei o meu sentimento de angústia”.
José Lopes inicia o briefing. Na palestra descreve a adaptação à “nova metodologia da rua”, em que passaram de “400 refeições para mais de 800”. Não esquece quem está na retaguarda que preparam o que será distribuído e deixam “mensagens e rebuçados”. Juntos, voluntários de casa e de rua fazem “toda a diferença”, relembra. “Não voltem com sobras. E em caso de alguém necessitar de ajuda, ligar 112. Não se mede pulsos, nem nada”, remata Margarida. Há luvas e máscaras para todos.
O SAPO24 seguiu na carrinha C. Nuno Fraga, José Rosinha e Sarah Pimenta, voluntários. Nuno roda a chave na ignição. “O nosso modelo é diferente. Mais do que dar comida, é ajudar a tirar pessoas da rua e mudarem de vida. Queremos conversa. Sporting, Benfica ou telenovela. Mas não só. O senhor Nélson fala connosco de Brexit. Não é só famílias desestruturadas que estão na rua. Há de tudo”, garante.
Primeira paragem: Olivais. Vítor é sem-abrigo. Está deitado, tapado por mantas e sacos cama. “Boa noite, comunidade Vida e Paz”, anuncia Nuno Fraga. Vítor, natural de Cabo Verde, levantou-se lentamente. Deixa metade do corpo a descoberto. Encosta-se aos vidros da loja que lhe serve de encosto. Vive debaixo das arcadas de um prédio.
Não fala. Não está para conversas. Abana a cabeça e sorri. Nuno Fraga tenta arrancar palavras. Recorda a visita que Carlos Mané, jogador de futebol, então ao serviço do Sporting Clube de Portugal, fez com a CVP. Promete voltar com a miss Cabo Verde. Uma promessa à qual Vítor respondeu com os braços ao céu e as mãos, que lentamente, desceram pelo rosto, destapando um sorriso.
A visita não demorou mais de dois minutos. “Uns falam, outros não. Num dia normal, há tendência para ficar a conversar. O nosso objetivo é criar empatia mais do que distribuir comida. É criar relação”, adianta. A atualidade dita outra realidade.
Olivais Velho. Duas casas sem luz e dois sem-abrigo numa habitação que não lhes pertence. Um abre a pequena janela. Acede a dois dedos de conversa. O Sporting poderia ser pano para mangas. A pedido, mostra placas e emblemas leoninos de outros tempos. O verde está demasiado esbatido. Recua com a refeição quente (bacalhau) e o amor da sua vida. Dois passos ao lado, Nuno Fraga anuncia. “Boa noite, Comunidade Vida e Paz”. Um rosto rasga o quadrado de vidro, estende a mão, solta “obrigado” e desaparece na escuridão. Sem mais comentários.
“Estamos todos os dias na rua. 354 dias, 96 pontos da cidade”, assegura Nuno Fraga. Dirigimo-nos para o Parque das Nações. Não há música no Altice Arena. Não há concertos, nem filas. Não há ninguém a não ser quem vive na rua. Nas imediações, um sem-abrigo, de cigarro na boca, pega no saco e deambula pela rua. Senta-se mais à frente para jantar. Há amontoado de sacos cama salpicados na paisagem.
Arrancámos. Estacionamos ao lado de duas carrinhas dos Paramédicos de Catástrofe Internacional, Unidade de Cuidados Intensivos. Estão equipados de fatos brancos, coletes amarelos identificativos ao corpo a que pertencem, luvas, máscaras, óculos e uma boina. Há algo de apocalíptico na indumentária. Preparam-se para servir sumos que receberam de outras instituições. E ajuda médica a quem necessite.
“Onde é que estão os meus amigos?”
No Pavilhão de Portugal são distribuídas “20 e tal refeições”, enumera. Uma sem-abrigo, de sacos na mão, pergunta pelos amigos. “Onde é que estão os meus amigos?”. Não sabe. Tinha encontro combinado. “Onde é que estão os meus amigos?”, repetiu.
À volta da pala de Siza Vieira há vários T0. 2 metros quadrados. Pé direito de um metro. Sem janelas, mas com paredes “ecológicas” feitas de cartão. Carrinhos de supermercado servem de dispensa. Multiplicam funcionalidades e serventias. Servem de ponto de nó para atar cobertores, que, por sua vez, funcionam como uma divisão.
Numa zona de restaurantes não há uma única porta aberta. “Obrigado, se não fossem vocês ... muito obrigado”, agradece uma voz anónima. Fala com um cigarro colado no canto da boca. Pede mais um saco para um “rapaz que deve estar a chegar”. Aponta para outros esconderijos. “Há ali, daquele lado, há ali mais uns”, alerta. Prossegue a conversa com os seus vizinhos que se juntaram à volta de uma garrafa de vinho.
Abastecimento feito. Seguimos. O interior da Estação do Oriente deixou de servir de teto. A Web Summit assim o ditou. A carrinha da Comunidade Vida e Paz estaciona perto de uma paragem de autocarro. Seres mutantes, saídos do nada, dirigem-se, em fila, para o porta-bagagem. São perto de três dezenas. É um “toca e foge”. O gesto é mecânico. Esticam braços e recolhem a comida. A maioria são homens. A maior parte move-se em silêncio. Pedem mais um saco para alguém que não está ali.
Antes da nossa viagem pela noite dos sem-abrigo, José Rosinha, voluntário com muitas voltas nos ombros, tinha avisado. “No Oriente, temos um médico na rua”. Lá estava ele. É o Henrique. “Médico de clínica geral e doenças infetocontagiosas”, informa. Não diz muito mais. “Não vale a pena falar”, avisa. Quebra o que disse e deixa escapar. “Fiz um acordo com Deus de não fumar e não beber”. O cigarro na boca contraria-o.
Caminha com a ajuda de muletas. Curvado. Sem conseguir olhar nos olhos de quem quer que seja. As roupas pertencem a outro corpo. Estão demasiado largas. Caem pelos ombros e cintura abaixo. O cabelo, não conhece mises, está enrolado e preso num carrapito. Parece uma palmeira em cima da cabeça.
Nuno Fraga não se cansa de avisar que o Casal Vistoso, pavilhão disponibilizado pela câmara municipal de Lisboa, está aberto a partir das 18h00. Aparecem dois interessados. Fraga liga para os virem buscar. Só um se desloca para o ponto de recolha. O outro desaparece sem deixar rasto.
Às 22h20 deixamos um Parque das Nações às escuras. No Beato e Xabregas o cenário é desolador. Lugar demasiado inóspito, ausência de sinais de vida a mais numa capital europeia. A monstruosidade de um futuro hub, em carcaça arquitetónica, à vista desarmada, não ajuda. Os semáforos funcionam indiferentes à ausência de carros.
Ao lado de restaurantes, perto do Instituto do Emprego e Formação Profissional, Nuno Fraga bate a uma porta. Vai entregar a refeição a um cliente habitual. “É fanático pelo Sporting”, diz, ele mesmo sócio do clube de Alvalade. A chegada a um prédio abandonado é feita ao som da buzina. Identifica a instituição e espreita para o fosso que separa um muro da casa à procura de sem-abrigo. Sem sucesso.
“Não é difícil vir parar a sem-abrigo. Basta não pagar a casa”
O navio cruzeiro MSC Fantasia, está atracado no Cais de Santa Apolónia. Está de quarentena e às escuras. Transportava 1338 passageiros.
Na estação de Santa Apolónia, assistimos a um remake do que se viu no Oriente. As luzes da carrinha anunciam a chegada. Há quem esteja já à espera, sentado, numa paragem de autocarro. Nuno Fraga aponta o local de estacionamento. Sobe o passeio e quase cola à estação de comboios. À esquerda e à direita, aparecem do nada. Segundos antes, eram cinco ou seis. Multiplicaram e são mais de 20.
“Olha, tem aí bacalhau”, exclama Sarah Pimenta, que se estreia no voluntariado. Pegam no saco e seguem. Uns aproveitam e entram no autocarro com o letreiro Oriente. Mais à frente viemos a saber que não andaram mais do que uma paragem.
Henrique aproxima-se. “Não é difícil vir parar a sem-abrigo. Basta não pagar a casa”, alertou. Deixa-se fotografar, sem vergonha de assumir a situação.
Sarah dá um conselho estético. “Tem de cortar a barba”. A barba farta encontra uma explicação na lei da vida. “É para impedir o bicho”, sorri. Promete mudanças quando “isto acabar”, antecipa-se. “Vou lavar-me com sabão azul e branco e faço pente 4”.
Lamenta não conseguir visitar a mãe, 85 anos, em Porto de Mós. Vive com o sobrinho, “filho do meu irmão que se separou cedo da mulher”. Recorda a aldeia que o viu nascer, onde “pais e a vizinhança tomavam conta de nós”. Fala da vida, da preferência clubística (“sou do Sporting”) e dos sonhos. “Queria ser Uber, mas agora deixo-me estar. Estou velhote e gostava de ter família”, atira. Despede-se e caminha para lado nenhum ao lado de um amigo da rua que promete ir ao Casal Vistoso “para a semana”.
“Falo todos os dias com o Deus e Ele fala comigo”
Na discoteca Lux não há filas para entrarem, nem porteiros a selecionar. Cinco pessoas vivem ali, debaixo da saliência do piso superior, num pequeno passeio que divide duas faixas de rodagem. Mais à frente, uma ponte rodoviária esconde mais de 15 pessoas. Há mesas-de-cabeceira, cadeiras, paletes, carrinhos de supermercado, tendas, bicicletas, candeeiros, caixas de cartão e cobertores num caos decorativo organizado. Coabitam num caldeirão cultural.
Um cidadão nepalês, de turbante na cabeça e chinelos nos pés, fala em língua inglesa e agradece com as mãos no peito. Um brasileiro pergunta, educadamente, entre risos, se há “lagostim, caviar e chocolate quente”. O romeno, que se apresenta como tendo feito parte da elite que circulava à volta do antigo líder, Nicolae Ceauşescu, recolhe o jantar, acena e deita-se. Maria, a portuguesa, fala até a deixarem falar. Das idas ao “banco” e ao “supermercado”. Mas o tema principal gira à volta da “praga lançada à terra pelo Diabo”, dos “milhares de Anjos no Céu” que foram enganados e da “outra peste, aquela de há 100 anos”. Sossega-nos. “Falo todos os dias com o Deus e Ele fala comigo.” Ele “sabe que 40% da população é religiosa (católica) e que virá à terra salvar-nos e às outras pessoas”. Entrelaça a conversa de Deus e o Diabo com citações bíblicas. “Nenhuma praga chegará à tua tenda”, solta. Sarah completa. “Nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda” (Salmo 91:10,11).
Na zona da Fábrica da Nacional, do lado da linha de comboio, fomos em busca de pontos de passagem entre as carruagens de contentores. Subimos e descemos, subimos, de novo. Demos de caras com três sem-abrigo deitados num minúsculo balcão na parede à distância de metro e meio da montanha de ferro. Atmosfera é sufocante e claustrofóbica para quem vem fora, segura para quem ali dorme. “Há mais?”, questiona Nuno Fraga. Resposta afirmativa. O braço serve de GPS. Saltámos do comboio e demos a volta. Caixas de televisores XL servem de paredes de duas “casas”.
Em plena Ribeira das Naus, espaço de reencontro com o Tejo e com a história da cidade, não há registo de um movimento, exceção feita aos autocarros e à polícia municipal. Ninguém passeia. Não se vê ninguém. A Doca Seca esconde duas vidas. Um sem-abrigo acorda. Vive quase encostado à parede. Aproveitou um relevo daquele local quinhentista para montar casa. A cabeça de um cão mantém-nos a uma margem maior do distanciamento social recomendado. Ao lado, quatro pedras por cima de uma manta pendurada indiciam que o inquilino não está. Não foi deixado saco.
A Humanidade num Rossio abandonado às suas fontes
Uma vida dormia debaixo do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência. Os litros de vinho explicam o sono profundo. O jantar fica para quando acordar. O mercado da Ribeira impressiona. Deserto e limpo. Sem vestígios de copos da noite ou legumes da manhã. A Rua de São Paulo, Chiado e Sé parece um filme a preto e branco percorrido entre os carris do elétrico.
A rota faz uma pausa no Rossio, na praça abandonada às suas fontes. Sinais de vida só mesmo na entrada do Teatro Dona Maria II onde pernoitam quem não tem outro local para dormir. A palavra Humanidade nas arcadas ganha significado bíblico.
A Avenida da Liberdade é feita aos soluços. Há quem estenda as mãos a pedir como se estivesse num restaurante. Agradecem e seguem caminho. “O Saldanha é das zonas com mais gente”, lamenta Nuno Fraga. Sente-se que por lá andou outra equipa, mas há que cumprir o mandamento de não levar sobras. No Arco do Cego, à volta da escola Filipa de Lencastre, Fraga, sabe quase de cor todos os esconderijos onde pode ajudar.
0:59. Fim de ronda. Encontro fortuito com outra equipa. Os voluntários despendem-se.
“Ser voluntário em estado de emergência, ou fora deste estado, é de destacar. Não somos heróis. Somos humanos mais atentos aos outros”, elogia. “O maior ativo do país são as pessoas e empresas socialmente responsáveis. Sem saber o que será o dia de amanhã, as empresas apoiaram e as pessoas saíram para a rua”, refere contente e orgulhoso. “Não me sai da cabeça uma frase: não nos abandonem”, remata.