Filipe Alfaiate, in Público
Há hoje uma mudança positiva: fala-se mais sobre sustentabilidade. Mas ainda se fala muitas vezes mal, confundindo-se sustentabilidade com reciclagem, com comprar cabazes de vegetais orgânicos ou carros eléctricos.
O tema da
sustentabilidade é um comboio que já saiu da estação. É cada vez mais usado na nossa sociedade. Mesmo ao leitor mais desatento, não lhe escapa. Está em todo o lado: nos discursos do primeiro-ministro, no
Plano de Recuperação e Resiliência, nos supermercados, nas facturas da electricidade e do gás e até, por vezes, nas bombas de gasolina...
Mas se já saiu da estação, esse comboio, pelo menos aos olhos dos transeuntes, parece mover-se em várias linhas ao mesmo tempo, senão mesmo em várias direcções, por vezes contraditórias. Assisto desde a primeira fila — no meu trabalho com empresas, Governo, organizações internacionais e alunos em Portugal e internacionalmente — a uma mudança positiva: fala-se mais sobre sustentabilidade, mas tantas vezes mal, confundindo-se sustentabilidade com reciclagem, com comprar cabazes de vegetais orgânicos ou carros eléctricos.
Esta confusão entende-se. Sustentabilidade significa coisas diferentes para António Costa, Ursula von der Leyen, a CEO da Sonae, o presidente da Gulbenkian, os activistas da Greenpeace, as empresas de impacto como a Patagónia e o sr. Luciano, do restaurante no fim da minha rua. Tomando de empréstimo uma expressão brasileira, sustentabilidade é uma “palavra grávida”: é interpretada de forma diferente conforme quem ouve, embora todos achem que estão a falar da mesma coisa (não estando).
E acabamos assim numa conversa pública sobre sustentabilidade algo desconchavada, que embrulha produtos green, iniciativas blue, iogurtes “bio”, ODS e fundos ESG (environmental, social and governance), o que deixa muitos a querer sair no apeadeiro mais próximo, cansados de tanta talk (ou, em bom português, de muita parra e pouca uva). Se deste artigo ficar alguma coisa, que fiquem estas ideias centrais: primeiro, a sustentabilidade não é apenas reciclagem nem o combate às alterações climáticas; e, segundo, sustentabilidade vai muito para além do Governo, da filantropia e das ONG — implica necessariamente as empresas e os mercados, que, sendo parte do problema, terão que ser parte da solução. Mais: a sustentabilidade é já uma condição de crescimento e diferenciação competitiva para as empresas, a ser visto, por isso, como um investimento e não um custo. Mas vamos por partes.
Pontas de um icebergue
Sugiro — até como pequena provocação — começar por definir sustentabilidade, realçando o que não é sustentabilidade. Contrariamente ao que ouço muitas vezes, sustentabilidade não é reciclagem, nem trocar palhinhas de plástico por palhinhas de bambu, comer chocolate orgânico e fair trade e vestir T-shirts feitas por artesãos pobres no Sudão do Sul. Nem uma empresa é sustentável porque usa papel reciclado, vende sumos “bio” na cafetaria, ou tem uma frota de carros eléctricos. O tema da sustentabilidade inclui tudo isso, mas não se resume a isso. São meras pontas de um icebergue.
A definição que fez escola é a da chamada Comissão Brundtland, uma comissão da ONU que, sob a liderança de Gro Harlem Brundtland, antiga primeira-ministra norueguesa, produziu o relatório
Our Common Future, nos idos de 1987. Este relatório enquadra o tema da sustentabilidade como “a satisfação das necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades, garantindo o equilíbrio entre o crescimento económico, o cuidado com o ambiente e o bem-estar social.”
Este enquadramento mantém-se profundamente actual — realço três pontos clarificadores. Primeiro, a sustentabilidade obriga-nos a incluir o futuro nos nossos cálculos e decisões sobre o presente. Seja em políticas governamentais, no que vestir e comer, onde investir, que produtos produzir ou serviços prestar. Segundo, a sustentabilidade engloba dimensões que, não sendo de ninguém, são de todos e a todos importam, porque a todos impactam: refiro-me à sociedade, ao ambiente e à economia. Não há planeta B para fazer negócios. Terceiro, a sustentabilidade é uma direcção não um produto ou uma campanha de marketing. Usando uma expressão feliz de Paul Polman (célebre ex-CEO da Unilever) e Andrew Winston, é a “Estrela do Norte” para a nossa jornada como cidadãos e profissionais, seja no sector público, privado ou social.
No livro Net Positive — How Courageous Companies Thrive by Giving More Than They Take (Harvard Business Review Press, 2021) é demonstrado como é possível, rentável e crucial que as empresas — como empresas e não como ONG ou fundações — tornem o capitalismo sustentável, convergindo lucro e impacto positivo. E este é um tema na ordem do dia. Ou seja, qual o papel do sector privado em termos de sustentabilidade?; o que devem e podem fazer e com que critérios? Os critérios conhecidos como ESG (ambientais, sociais e de governança) procuram responder a essa pergunta. Desenvolvidos, no essencial, do lado dos investidores, concretizam a sustentabilidade em parâmetros concretos.
A dimensão ambiental é a mais intuitiva e saliente. Refere-se, por exemplo, à utilização eficiente de energia, ao tratamento de desperdícios, aos vários tipos de poluição, ao tratamento de animais, etc. Ou seja, refere-se às consequências ou externalidades negativas do que vamos fazendo, nas escolhas que fazemos em casa e nas empresas, nas organizações, no Estado, no ambiente ou com impacto ambiental.
A dimensão social da sustentabilidade é possivelmente a menos conhecida, como critério de sustentabilidade. É social no sentido da relação da empresa com a sociedade, com aqueles que são os seus parceiros (stakeholders), por exemplo, os seus funcionários (e as suas comunidades) e os seus fornecedores. Alguns exemplos: a empresa trabalha com fornecedores que partilham os seus valores? E que respeitam direitos humanos? As suas condições de trabalho são dignas, os horários de trabalho equilibrados (work and life balance), com salários acima da média, que permitem formar família?
Não se trata de filantropia, nem de apoiar projectos sociais distintos do negócio. Mas, antes, de ter modelos de negócio capazes de incorporar estas preocupações de uma forma que também aproveita o desempenho, designadamente financeiro, das empresas. E que aumenta a retenção de talento, a produtividade e até o apoio público em momentos complicados. Veja-se o excelente exemplo do modelo de negócio da Delta que está ancorado numa visão estratégica de longo prazo e não de resultados imediatos, podendo, por isso, integrar desempenho financeiro com um envolvimento fortíssimo e preocupado com a comunidade onde está inserida (Campo Maior) e com o bem-estar e a saúde dos seus funcionários.
Por fim, a governança, que é o critério mais técnico, mas não menos importante. Centra-se na ética empresarial, no controlo interno e gestão de risco com enfoque no envolvimento político, bem como no papel da administração (remuneração, composição e controlo). Pergunta-se aqui se as empresas são transparentes sobre o seu impacto negativo e positivo — está medido, e especificado e publicado? Quais são as políticas para evitar corrupção, a contratação de recursos humanos com conflitos de interesse, etc.? Olha-se aqui também para a diversidade e paridade de género na administração e a sua remuneração. Sem estes pontos, uma empresa não pode ser considerada sustentável, mesmo que seja líder mundial em energias renováveis ou economia circular.
Momento “homem na lua”
Esta visão foi reforçada pela Comissão Europeia, que, no passado dia 23 de Fevereiro, apresentou uma proposta de directiva sobre o “dever de diligência das empresas em matéria de sustentabilidade”. Vai ainda ser alterada antes de ser aprovada, mas antevê-se que mudará as regras do jogo sustentabilidade-empresas. Tornará obrigatório o reporte sobre sustentabilidade como parte integrante do relatório de gestão, com padrões iguais para todos, a definir pela UE. E irá responsabilizar as empresas de certa dimensão não apenas pelo que fazem, mas por aquilo que os seus fornecedores e os fornecedores dos seus fornecedores fazem, em certas matérias. Um passo essencial para impor o respeito de direitos humanos e práticas sustentáveis em cadeias de fornecimento, abrangendo muitas PME no processo. Importante em todas as indústrias, mas essencial em indústrias globais como a do chocolate e a do têxtil, onde o trabalho infantil e o trabalho forçado têm sido reportados múltiplas vezes.
Porém, as melhores práticas de ESG do mundo nada significam se não houver investimento disponível. Nesta matéria, o compromisso da União Europeia é inegável e palpável. A presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, chamou à nova estratégia da UE, focada em crescimento sustentável, o nosso momento “homem na Lua”, um ponto de viragem. A UE avança para o futuro com um novo modelo de crescimento económico sustentável, detalhado no
Pacto Ecológico Europeu (
Green Deal) que, nas palavras da presidente da Comissão, “quer transformar a UE, até 2050, numa sociedade justa e próspera, com uma economia moderna, competitiva e eficiente em termos de recursos”.
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Sustentabilidade é uma 'palavra grávida': é interpretada de forma diferente conforme quem ouve, embora todos achem que estão a falar da mesma coisa (não estando) Filipe Alfaiate
Retórica política à parte, existe ambição e financiamento. A Comissão Europeia definiu um colossal investimento de um bilião de euros, “através do orçamento da UE e de outros instrumentos que lhe estão associados, (…) em investimentos sustentáveis públicos e privados
ao longo da próxima década”. Este Green Deal terá repercussões óbvias em Portugal. Quer através de novas imposições legais e regulamentares, quer mediante o condicionamento do acesso a financiamento e a subsídios europeus a ESG, trazendo mudança mesmo em sectores conservadores nestas matérias, como a agricultura e a pecuária, entre outros, mas onde os subsídios europeus são, por vezes, muito relevantes.
E, claro, o nosso PRR com a sua “bazuca” de
16,6 mil milhões de euros, a executar em cinco anos, e construído sob o mote do crescimento sustentável; como se conclui, não tanto por referir a palavra “sustentável” 137 vezes e “sustentabilidade” 76 vezes, mas porque prevê cerca de 3 mil milhões para a sustentabilidade (transição climatérica, mobilidade, biodiversidade, economia azul, etc.).
E do lado do sector privado? Bom, os números são expressivos e positivos. Apenas nos últimos dois anos, segundo a Reuters, mais de um bilião de dólares foi investido em fundos de investimento ESG. Na realidade, os investimentos ditos sustentáveis já não são um nicho, pois totalizam 35,3 biliões de dólares, mais de um terço do total dos activos sob gestão nos cincos principais mercados internacionais. A agência Moody’s prevê que a emissão de obrigações denominadas green, social, sustainability and sustainability-linked (GSSS) possa chegar a 1,35 biliões de dólares em 2022. Por seu lado, a Bloomberg estima que os activos “global ESG” possam atingir os 53 biliões de dólares até 2025.
Que se note: existem dúvidas sobre a sustentabilidade de muitos destes fundos ESG, muitos dos quais seguem critérios duvidosos e vagos. Haverá muito para acertar e nada disto permite cantar vitória. É preciso assumir que não se chegou ao destino. Mas o comboio já saiu da estação. E tem três motores.