Sofia Lorena, in Público on-line
Dois terços dos 3,7 milhões de crianças e adolescentes que são hoje refugiados não vão à escola. No deserto entre a Síria e a Jordânia há 75 mil pessoas sem acesso a ajuda. “Já para nem falar da Nigéria, onde tanta gente foge dos terroristas do Boko Haram.”
Crianças refugiadas com voluntários na ilha de Lesbos, na Grécia Louisa Gouliamaki/AFP
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Os Médicos Sem Fronteiras assinalaram a conferência de Nova Iorque com uma lista de oito “choques de realidade, “determinados contextos” em que a ONG trabalha “com refugiados que apresentam algumas das situações mais terríveis” que enfrentam hoje os mais de 65 milhões de refugiados e deslocados. A lista do PÚBLICO é feita a partir de relatórios de várias ONG e de outros testemunhos. A ideia é mesma: face a uma bem-intencionada declaração de princípios, lembrar o dia-a-dia de tantos, sublinhando, como os MSF, que muitos membros da ONU que assinaram a declaração “já a estão a violar, com políticas que aumentam o sofrimento de milhões”.
Os 75 mil sírios na “berma”
Há mais de dois meses que pelo menos 75 mil pessoas estão encurraladas entre a Síria e a Jordânia. Imagens de satélite divulgadas a semana passada pela Amnistia Internacional mostram “o aumento dramático no número de abrigos” e “campas improvisadas e são uma espreitadela rara na terra de ninguém de deserto onde dezenas de milhares de refugiados estão, cortados de qualquer apoio humanitário”, escreve a organização num comunicado. Reunidos testemunhos de “pessoas na área conhecida como a berma”, a AI faz “um retrato desesperado do sofrimento” de gente apanhada a caminho da fuga quando Amã decidiu fechar a fronteira (em resposta ao ataque contra uma base militar, a 21 de Junho) e exige à Jordânia que permita a sua entrada imediata.
Segundo os MSF, quatro em cada cinco destes 75 mil sírios são mulheres e crianças “com acesso insuficiente a água e quase nenhum acesso a alimentos”. Numa entrevista, a presidente do Conselho Português para os Refugiados também sublinha esta “situação muito preocupante”, no contexto do conflito sírio. “Sabemos que tanto a Jordânia como o Líbano, além da Turquia, claro, são os países com mais refugiados sírios. E no Líbano as condições também são muito duras, principalmente de saúde pública e sanitária”, diz Teresa Tito de Morais.
Dois terços das crianças e adolescentes sem escola
No Líbano, país de pouco mais de 4 milhões de habitantes onde há 1,5 milhões de refugiados sírios, “estima-se que mais de 60% dos jovens não têm acesso à educação”, nota Teresa Tito de Morais. A situação do conjunto dos 65 milhões de refugiados é ainda pior: segundo um relatório do Fundo Malala e da Universidade de Cambridge, dois terços dos 3,7 milhões de crianças e adolescentes que são hoje refugiados não vão à escola. “Os primeiros-ministros e Presidentes escolheram a ‘sobrevivência’ como tema para discutirem os refugiados. Porque é que baixaram tanto a fasquia? Não podemos continuar a dar-nos por satisfeitos com um mundo em que as nossas ambições para os refugiados passam por pescarmos crianças do oceano e lhes tratamos das feridas”, disse a própria Malala Yousufzai, a paquistanesa que sobreviveu a um ataque dos tabiban, Nobel da Paz em 2014.
Os somalis e o princípio de "non-refoulement"
Muitos refugiados espalhados pelo mundo enfrentam o risco de serem devolvidos à força aos seus países de origem apesar de continuarem a correr risco de vida, mantendo-se as condições que os fizeram fugir em primeiro lugar. Num caso em particular a violação do princípio de “non-refoulement” (não-devolução) está a ser mais sistemática. Há três anos que o Quénia e a ONU acordaram o encerramento do maior campo de refugiados do mundo, Dadaab, onde vivem perto de 300 mil somalis (já foram meio milhão). Em Dadaab falta água, alimentos e abrigo mas muitos preferem lá estar a regressar à Somália. Milhares têm sido obrigados a voltar a casa, “com a cumplicidade das Nações Unidas”, denuncia a Human Rights Watch. No processo de “repatriação voluntária” iniciado pelo Governo queniano, não é dada uma “verdadeira escolha” aos refugiados, “intimidados” pelas autoridades e a quem não é dito nem qual é a situação real na Somália nem quais são as opções se quiserem ficar no Quénia, diz a ONG num relatório. A maioria dos que volta ao seu país, acusa a Human Rights Watch, não o faz de livre vontade “mas com medo de serem repatriados”. Das 24 mil que voltaram, 18 mil regressaram entretanto ao Quénia.
Líbia e o Mediterrâneo, travessia duas vezes mais letal
Até 14 de Setembro, segundo a Organização Mundial das Migrações, 3212 pessoas tinham-se afogado do Mediterrâneo em 2016 – à Europa chegam agora menos refugiados do que em 2015, mas os MSF notam que a travessia do Mediterrâneo Central, da Líbia até Itália, é duas vezes mais letal do no ano passado. A ONG sabe do que fala; foi precisamente em 2015 que iniciou, com outras organizações, as suas próprias operações de resgate e salvamento (34 mil pessoas tiradas do mar). Ainda na Líbia, “quase todos os resgatados afirmam ter testemunhado violência extrema contra refugiados, solicitantes de asilo e imigrantes, incluindo espancamentos, abuso sexual e assassínios”.
Lago Chade e a grande fuga do Boko Haram
“Já para nem falar da Nigéria, onde tanta gente foge dos terroristas do Boko Haram”, diz Teresa Tito de Morais, depois de enumerar “os conflitos mais terríveis de onde os civis tentam escapar de situações intoleráveis”. A violência do Boko Haram (e das forças militares que o combatem) já forçou 2,6 milhões de pessoas a fugir do Nordeste da Nigéria. A maioria nem sequer recebe assistência em campos de refugiados, vivendo em condições precárias junto de comunidades que já sobrevivem com muito pouco. Outros, denunciam os MSF, “foram transferidos à força para locais onde estão retidos”, “sem condições básicas de vida e de saúde”.