2.12.21

Mães com filhos ocupam casas: “Se fazemos isto, é porque estamos desesperadas”

Joana Gorjão Henriques (Texto), Daniel Rocha (Fotografia) e Rui Gaudêncio (Fotografia), in Público on-line

Mães com filhos sem sítio onde morar ocuparam casas de habitação social em bairros de Lisboa ou Loures que estavam vazias, algumas prestes a ser demolidas, outras que estavam fechadas há anos. Há quem viva em caves sem casa de banho. O dilema de quem sabe estar ilegal, mas vive com medo que a polícia apareça: “Vou com os meus filhos para onde? Debaixo da ponte?”

Grades a tapar as ruas, polícia municipal à entrada do bairro. Janelas e portas emparedadas com tijolos. Está escuro dentro destas casas baixas geminadas, de dois andares, que se distribuem pela zona de alvenaria do Bairro Padre Cruz, em Carnide, Lisboa. Não há vidros, a pouca luz que existe vem das frechas que deixam passar claridade entre tijolos. Natália de Sousa acordou uma noite destas com a impressão de ouvir retroescavadoras. “Deve ter sido o balde do lixo”, diz, para exemplificar como tem andado em sobressalto.

Aos 37 anos, vítima de violência doméstica, fugiu do companheiro (que não é pai de nenhum dos filhos). Esteve um período sem ter os dois filhos com ela — Ângelo de 12 anos e Íris de sete anos — para evitar que assistissem a agressões. Mudou-se para o apartamento de um amigo, esteve numa casa-abrigo, mas não correu bem.

Cozinheira, actualmente desempregada, vive do rendimento social de inserção (RSI) e do abono dos filhos. Está à espera do apoio estatal à habitação. Enquanto isso, vive nesta casa ocupada no Padre Cruz, construída na década de 1940 e 1950. Convida a entrar pela porta que arrombou com a ajuda de um amigo há cerca de seis meses. “Se não estivesse aqui, estaria na rua, ou estaria morta. Só queria um tecto para os meus dois filhos.”

Se não estivesse aqui estaria na rua ou estaria morta. Só queria um tecto para os meus dois filhos Natália de Sousa

Entramos pela sala, passando antes por um pequeno pátio onde há uma bola de espelhos que parece ter ficado de outros tempos. Em frente à porta erguem-se umas escadas para o segundo andar. Está escuro. “Pode entrar.” Mostra a cozinha, onde há um forno sobre o solo, um frigorífico, mas sem lava-louça. Em frente fica uma divisão outrora quintal, e que agora serve para ela e os filhos tomarem banho, de mangueira. Lá em cima ficam os quartos; a casa de banho só tem retrete, sem autoclismo, por isso há baldes de água à porta. “Há higiene e limpeza, mas não são condições para viver com duas crianças”, afirma. “Se sair daqui, volto para o agressor, não tenho para onde ir”, sublinha. “Bem ou mal tenho um lar. Vou com os meus filhos para onde? Debaixo da ponte? Sou capaz de ir – mas é desumano.”

A pouco e pouco Natália diz que está a organizar-se, “um dia de cada vez”. Planeia fazer um curso. O que mais deseja? Uma casa que possa pagar.

Tudo se complica para esta mulher, que nasceu em Portugal e que por ser filha de cabo-verdianos ficou com a nacionalidade dos pais e ainda não tratou do pedido de nacionalidade. “Tenho de pagar 250 euros. Uma coisa que é minha por direito?”, questiona, indignada. “Eu sei que tenho de tratar disso, para mim foi um entrave…”

Não é a única a ocupar casa neste bairro, nem a única mãe com filhos a fazê-lo. O bairro está policiado, emparedado e gradeado, mas serve de casa a famílias monoparentais — leia-se, de mulheres — que não tinham para onde ir.

Com telhados de amianto, e materiais que precisam de renovação, está planeado que esta zona de alvenaria do Bairro de Padre Cruz vá abaixo, para se construir nova habitação social num projecto iniciado em 2010. Segundo a Câmara Municipal de Lisboa (CML) estavam registadas ali cerca de duas mil pessoas. O realojamento está a ser feito de forma faseada, foram realojadas 245 famílias e demolidas cerca de 300 casas.

“É uma tortura”, descreve Natália, “estar sempre à espera” de ser despejada

Quem vê de fora pensa que já ninguém ali vive: as ervas tomaram conta de fachadas, as portas que existem estão velhas, os escombros de demolições alternam com as casas que ainda estão de pé. Sem rendimento e sem casa, várias mães com filhos viram na ocupação um remedeio. Vivem com medo. “É uma tortura”, descreve Natália, “estar sempre à espera” de ser despejada.

Foi sobretudo nos últimos tempos, depois do confinamento por causa da pandemia, que estas mães foram chegando aqui. Liliana Tavares, grávida de cinco meses, é uma delas. A trabalhar em limpezas quatro horas por dia, não tem como pagar uma renda. A casa, com duas divisões, está reduzida à sala, porque chove no quarto. A casa de banho dá directamente para a sala, sem porta.

Depois de Cassandra Ferreira ter recebido a 16 de Novembro uma carta da Gebalis, gestora do bairro, em que avisava que teria que proceder à desocupação, pois constitui “um crime de usurpação de coisa imóvel”, o medo voltou a tomar conta destas mulheres. Se no prazo de dez dias úteis não sair, avisa a Gebalis, a “polícia municipal executará a desocupação de forma coerciva”, “transferindo os bens para depósito municipal”.

Jamais nos íamos sujeitar a ocupar uma casa se não fosse de máxima urgência e necessidade Cassandra Ferreira

Grávida de cinco meses, com 23 anos, três filhos – de cinco, dois e um ano —, Cassandra e o actual companheiro estão ali há cerca de 15 meses. A família paterna viveu no bairro. Na casa puseram janelas, decoraram a cozinha e montaram móveis novos, foram arranjando a casa aos poucos. Viveram em casa da sogra, mas “eram 12 crianças e quatro adultos para” três quartos. “Para fazer comida, tínhamos de esperar a minha sogra ou cunhada fazerem…Andei à procura de casas. Encontrei esta, que tinha a parte de trás aberta. Durante três meses fomos remodelando a casa para viver minimamente”, explica. Com outras 15 mulheres escreveram uma carta em que pedem compreensão às autoridades: “Jamais nos íamos sujeitar a ocupar uma casa se não fosse de máxima urgência e necessidade.”

Cassandra esteve a trabalhar numa caixa de supermercado, mas ultimamente fazia biscates com a família, de feirantes. A mãe, doente, foi viver com ela. O pai vende flores à porta do cemitério e não tem como a ajudar.

Sem conseguir receber o RSI, Cassandra vive dos biscates do marido, dos 199 euros de apoio da mãe, dos abonos de 374 euros dos filhos. “Estivemos a ver casas e era absurdo. Não tínhamos dinheiro — além da renda, há o gás, luz, fraldas, leite.” Já se inscreveu em vários sítios para apoio de casa mas ainda não teve feedback. “E agora tiraram-me o chão”, comenta sobre a carta recebida. Foi a várias entidades e todos “dizem que não têm resposta”. “Para onde vamos com os nossos filhos? Se fôssemos pessoas sozinhas, alguém poderia dar apoio. Quem vai dar casa, ceder quarto, comigo, a minha mãe e os meus filhos?” Ocupou ilegalmente uma casa, sabe que cometeu uma ilegalidade. Mas diz: a prioridade foi “dar-lhes condições”.

Recebia 635 euros, pagava 300 euros de renda onde me chovia torrencialmente dentro do quarto, mais as despesas — não sobrava nada Patrícia Pereira

Esta é uma frase que se repete neste bairro. Patrícia Pereira, de 28 anos, tem uma bebé de três meses no colo e um filho de oito anos a ajudá-la a empurrar o carrinho. Perdeu o emprego numa empresa de limpezas depois de ter a filha — estava lá há cinco anos sem contrato. Tinha uma casa alugada não muito longe dali: “Recebia 635 euros, pagava 300 euros de renda onde me chovia torrencialmente dentro do quarto, mais as despesas — não sobrava nada.”

Há um ano que está na casa que conseguiu ocupar quase sem fazer obras; era de um homem que morreu e estava impecável. “Abri a porta, mudei mobília, fui arranjando outras coisas. É viver um dia de cada vez.” A Gebalis quis que ela saísse, ela não saiu. Já pediu apoio para a habitação. “Só queremos uma casa que possamos pagar com os nossos rendimentos. A receber 280 euros do RSI não consigo pagar uma renda.”

Em pé, na rua onde moram, Cassandra e Patrícia dizem que voltariam a fazer o mesmo. “Condições para os criar temos, só nos falta é um tecto”, dizem.
  
“Vou batalhar para não sair”

O filho de Carla costuma avisar a mãe quando está a vir da escola: “Olha a polícia.” “Eu bato à porta e eles perguntam: ‘Quem é?’, com medo.” Com quatro dos cinco filhos a viverem com ela, é de lágrimas nos olhos que Carla, de 46 anos, conta a sua história. Dentro de casa, que tem menos humidade do que a de Natália e estava originalmente em melhores condições, os filhos vêem televisão no sofá; estão com tosse, por isso não foram à escola. Ela leva-nos à cozinha onde conseguiu montar alguns electrodomésticos. Depois mostra-nos os quartos no andar de cima. O pai dos filhos morreu, a sogra “expulsou-os” — palavra que usa para descrever a situação.

Estava cheia de medo. Arrombei a porta. A casa estava cheia de lixo. Mas tem quatro quartos, tenho quatro filhos, disse: ‘é mesmo aqui que vou ficar’. Carla

Carla ainda esteve um dia em casa da mãe, mas não havia condições. O filho mais velho falou-lhe do Bairro Padre Cruz. “Estava cheia de medo. Arrombei a porta. A casa estava cheia de lixo. Mas tem quatro quartos, tenho quatro filhos, disse: ‘É mesmo aqui que vou ficar’” Já foi identificada quatro vezes pela polícia. Neste momento não tem emprego, não tem com quem deixar os filhos mais novos que só têm escola da parte de manhã.

A qualquer momento podem ter de sair: “Mas vou batalhar para não sair. Tenho que batalhar, não tenho para onde ir com os meus filhos, senão não estava aqui. Sei que isto é ilegal, tenho plena consciência”, afirma enquanto chora.

Vai pôr os papéis para pedir apoio de uma casa na câmara. “O meu objectivo é dar-lhes uma vida estável porque eles também vivem com medo.”

O presidente da Junta de Freguesia de Carnide lamenta a habitação social não estar sob responsabilidade das juntas, que considera terem “grande capacidade de identificar agregados e situações de carência”: todas as semanas recebe pelo menos cinco pessoas com problemas destes.

Esta é, nas palavras de Fábio Sousa, presidente da Junta de Freguesia de Carnide (PCP), uma situação “muito complexa”, que “acontece” em vários locais de Lisboa. Lamenta a habitação social não estar sob a responsabilidade das juntas, que considera terem “grande capacidade de identificar agregados e situações de carência”: todas as semanas recebe pelo menos cinco pessoas com problemas destes.

Muitas das pessoas que ocuparam casas vieram de fora, comenta, e sabe que grande parte foi por desespero. A junta tenta ajudar no processo de candidatura ao apoio à habitação. “A câmara devia ser mais ágil”, critica. “Não podemos descansar enquanto houver uma casa livre para atribuir e ter famílias a viver em condições difíceis.”

A Habita contou mais de 200 mulheres a ocupar casas municipais em Lisboa, Loures e Almada que as procuraram nestes últimos tempos

Segundo a CML há nove famílias que ocupam ilegalmente habitações em alvenaria neste bairro. Essas ocupações impedem a demolição e a progressão da construção de habitações “que irão beneficiar 267 famílias que legitimamente têm direito a uma habitação”. A autarquia diz que reconhece “que as desocupações das famílias poderiam criar situações de vulnerabilidade social” e que estas foram informadas da situação irregular em que se encontram e da necessidade de retornarem ao seu alojamento de origem “uma vez que são coabitantes autorizados noutros fogos municipais do Bairro Padre Cruz e outros”. “Para as duas famílias que não integram outros fogos municipais, a SCML no âmbito das suas competências articulou directamente com as famílias a solução de alojamento temporário. As famílias não demonstraram interesse neste apoio.” Há ainda quatro famílias que foram apoiadas na apresentação de candidaturas, diz a CML. Sublinha que foram avisadas da necessidade de desocuparem os imóveis — “só posteriormente decorrem os trâmites legalmente exigíveis para a desocupação”.

Mas nenhuma das famílias que o PÚBLICO entrevistou diz ter alternativa, nem ter sido encaminhada para uma solução viável a curto prazo.

Sobre o número de casas municipais vazias a CML afirma que há entre 300 a 400 casas “a ser reabilitadas"; há casas vazias por vários motivos — o titular estar doente, estar a decorrer o prazo legalmente previsto para desocupação ou serem casas reservadas para as operações de realojamento são alguns exemplos — mas isso não significa que estejam vagas.

Soluções para quem vai ser despejado? “A CML encaminha para a rede social estas famílias, assim como apoia a sua candidatura aos programas de habitação do município, colocando-os em pé de igualdade com as demais famílias com carência habitacional na cidade de Lisboa”, afirmam.
Mulheres mais afectadas

À Habita, associação de defesa do direito à habitação que apoia várias pessoas, têm chegado várias situações semelhantes às de Natália, Cassandra, Patrícia: Maria João Behran contou mais de 200 mulheres a ocupar casas municipais em Lisboa, Loures e Almada que as procuraram nestes últimos tempos.

São as mulheres quem tem trabalhos mais precários, estão mais vezes a viver sozinhas com os filhos e é difícil compatibilizar horários de escola com trabalho (...) as pessoas vêem espaços vazios e ocupam. É uma estratégia de fim de linha que ninguém toma de ânimo leve porque sabe que está sempre na iminência de sair Maria João Behran, Habita

Em Março, a associação juntou-se no movimento Mulheres p’lo Direito à Habitação (MuDHa), uma rede feminista que luta pela igualdade de género e por condições habitacionais e de vida dignas, e enviou uma carta a várias entidades, incluindo o Presidente da República.

Segundo dados recolhidos pela Habita junto da Pordata, são as mulheres as mais afectadas pela crise na habitação. De um total de 4.068.878 agregados domésticos em 2020, 470.654 eram monoparentais e, destes, 84,75% eram encabeçados por uma mulher. São justamente as famílias monoparentais que têm maior probabilidade de ser afectadas pela pobreza (25% versus 16% no total).

Questionado, o Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, que gere a habitação pública, não revelou quantos pedidos de casas tem, quantas pessoas estão em lista de espera e quantas casas tem vagas. Porém, os últimos dados disponíveis pelo INE de 2015 mostram que, das cerca de 120 mil casas de habitação pública na altura, cerca de 6729 estavam vagas e cerca de 800 eram ocupadas ilegalmente.

Maria João Behran contextualiza: “Sabemos que são as mulheres quem tem trabalhos mais precários, estão mais vezes a viver sozinhas com os filhos e que é difícil compatibilizarem horários de escola com trabalho. Há ainda os transportes e outras despesas. Muitas vezes ficam em casa das mães, mas há situações de mal-estar, casas sobrelotadas – as pessoas vêem espaços vazios e ocupam. É uma estratégia de fim de linha que ninguém toma de ânimo leve, porque sabe que está sempre na iminência de sair.”

Maria vivia numa barraca em Vila Franca de Xira que ficou totalmente destruída com um vendaval; tentou candidatar-se a uma casa camarária mas ficou em “suplente”. Alugar casa, desde que acessível, é um dos objectivos. “Mas mal sabem que sou cigana não alugam”

E qual o posicionamento das autoridades sobre estas situações? “Precisamente por existir um processo legal de atribuição de habitações não podemos permitir que as casas ocupadas ilegalmente sejam atribuídas de forma diversa do procedimento legal estatuído e no qual tantas famílias estão inscritas”, responde o IHRU. “Isto não pressupõe que, no caso das ocupações, essas famílias fiquem privadas, quando elegíveis, do mesmo direito, mas pressupõe que a sua atribuição vai ter de ser promovida nos termos legais, sob pena de passarmos a ter um processo moral e socialmente ingerível.”

Para Maria João Behran o argumento de que as pessoas que ocupam casas estão a passar à frente de outras não “justifica anos de casas vazias”: “Não vemos pressa de as câmaras resolverem o problema. É preciso reconhecer que as pessoas que ocuparam não expulsaram ninguém, deram uma função à casa que estava inútil. Não morar em lado nenhum não é uma opção. O que esperam que as pessoas façam? Ninguém vai morar para uma cave, porque era mesmo isso que queria.”

É exactamente esse o comentário de Maria Santos, de 24 anos, com um filho de seis anos e outro de três. “Se houvesse uma solução para nós, não estávamos numa cave, porque as condições são zero. É só bicharada, e o frio! O vento leva tudo para o ar. Ninguém merece morar numa cave”, afirma.

Maria vivia numa barraca em Vila Franca de Xira que ficou totalmente destruída com um vendaval; tentou candidatar-se a uma casa camarária, mas ficou como “suplente”. Alugar casa, desde que acessível, é um dos objectivos. “Mas mal sabem que sou cigana não alugam.” Aconteceu-lhe duas vezes.

Agora instalou-se numa cave na Quinta das Mós, um bairro de habitação social em Loures, sem casa de banho, sem cozinha no prédio onde vive a mãe com mais cinco pessoas. Para superar o frio, tem uma ventoinha ligada, mas as frechas da grade deixam passar tudo. Um lençol ao alto separa a sala da cama de casal onde ela e os filhos dormem. Encostado a uma das zonas está uma espécie de fogão. Tem ainda máquina de lavar roupa. É através de uma pequena torneira que vai buscar água, mas para fazer necessidades tem de ir a casa da mãe. Há mais três mulheres em situação idêntica naquele bairro, também com filhos, excepto uma. Na semana passada receberam um aviso da Câmara de Loures a dizer que deveriam abandonar o espaço “sob pena de desobediência” até sexta-feira, mas o despejo acabou por não acontecer.

Câmara diz que desconhecia estas situações

Contactada pelo PÚBLICO, a autarquia — que nas últimas eleições mudou do PCP para o PS — respondeu que “o actual executivo municipal, em funções desde 15 de Outubro de 2021, desconhecia a existência destas situações”. “Já deu indicação aos serviços que assegurem o acompanhamento social integrado destes agregados, nomeadamente, através do seu encaminhamento para os competentes serviços da Segurança Social.” Referiu ainda que algumas das situações agora sinalizadas são “pedidos de desdobramentos de agregados familiares que, em termos de resposta, se enquadram nas soluções previstas no Programa 1.º Direito”. A autarquia diz ainda que mandou fazer um levantamento da situação do parque habitacional municipal.

“Não há rendas baratas” para uma família de cinco pessoas. “Se um casal com os dois a trabalhar é complicado, imagina eu com quatro filhos e sozinha. Eu não quero estar aqui de borla, quero ficar aqui e fazer contrato. Nunca estive numa situação destas”

Quando os encontramos na mesma rua de Maria, Beatriz e o marido estão a arrumar as coisas de casa, à pressa, com medo de que no dia seguinte apareça a polícia; receberam o aviso e queixam-se de não terem tempo para organizar a vida. Na cave conseguiram fazer uma casa de banho e, colada, uma cozinha. Os pais de Beatriz vivem no prédio, mas não se dão bem; ela diz mesmo que o pai a expulsou de casa. “Encontrei aqui este aconchego, fiz uma minicasa. Por mim dormia dentro do carro. Mas o meu problema é onde é que vai dormir a minha filha? Na rua, a chover?”

Noutro lado da cidade, num prédio de habitação social do Lumiar, Susana Araújo, de 38 anos, desce à entrada do prédio e conduz-nos ao sexto andar. Quando se separou do marido, vendeu a casa onde viviam na Ramada e com o dinheiro pagou o empréstimo. Com quatro filhos (de 7, 9, 16 e 18 anos), na altura foi viver com a mãe, onde estavam também os sobrinhos e outra irmã. Não correu bem.

Com duas casas de banho, quatro quartos e uma sala, há seis meses que vive neste apartamento luminoso com pouca mobília e electrodomésticos, que lhe foram sendo oferecidos por amigos. Na sala está a árvore de Natal montada, há um sofá em frente a uma televisão, uma mesa, estantes e pouco mais. Falaram-lhe da casa que estava vazia “há cinco anos”. Aconselharam-lhe: “Mete-te lá com os miúdos.” Assim foi. Nesse dia teve a polícia à porta; ninguém a pôs na rua, mas tem uma queixa contra si. Passado pouco tempo teve ordem de despejo; tentou ir à Gebalis, mas ninguém a atendeu; foi à junta de freguesia, inscreveu-se no programa de rendas acessíveis. “Tem uma lista interminável, nem consegui ver o meu nome.”

Sem trabalho, a receber abono de família, o RSI e a pensão que o pai dos filhos paga — ao todo diz que são uns cerca de 800 euros por mês —, vai fazendo biscates. “Não há rendas baratas” para uma família de cinco pessoas. “Se um casal com os dois a trabalhar é complicado, imagine eu com quatro filhos e sozinha. Eu não quero estar aqui de borla. Quero ficar aqui e fazer contrato. Nunca estive numa situação destas”, lamenta. “A qualquer hora podem bater à porta. É horrível. Pensam que estamos a brincar às casinhas. Não estamos. Posso pagar uma multa, posso ir para o olho da rua e ficar sem os meus filhos. Se fazemos isto, é porque estamos desesperadas. Não vou desistir de dar uma vida estável aos meus filhos.”

Contactada na quinta-feira, a Câmara de Lisboa não respondeu sobre se tinha conhecimento de que havia famílias com crianças no Bairro Padre Cruz, quais as alternativas que tinha para estas, quantas casas de habitação social estão desocupadas na cidade, como se explica que existam listas de espera e casas sem pessoas durante anos e o que planeia fazer com as famílias com crianças que estão nestes alojamentos e não têm para onde ir.
Há pelo menos 36 mil famílias a viver em condições indignas

Criado durante o Governo de António Costa como uma das grandes linhas da Nova Geração de Políticas de Habitação, o Programa 1.º Direito tem como objectivo responder às necessidades de famílias que vivam em condições indignas. É o programa sucessor do Programa Especial de Realojamento (PER), criado em 1993 para erradicar as barracas das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, mas abrange todo o território e é dirigido às pessoas, mais do que aos lugares.

Foi, assim, pedido às câmaras que fizessem um diagnóstico, e nessa altura, em 2018, foram identificadas 26 mil famílias. Passados estes anos, esse número já subiu: estão sinalizadas neste momento quase 36 mil famílias, que residem sobretudo em municípios das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, disse o gabinete do ministro das Infra-estruturas e da Habitação.

Para receber o apoio as famílias são identificadas pelas autarquias, através das Estratégias Locais de Habitação (ELH) – por isso, parte da explicação para este número é que foi feito “um levantamento muito mais exaustivo” do que aquele que esteve na base do Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional, concretizado pelo Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU). “Enquanto no levantamento de 2018 os dados correspondem apenas às respostas dadas ao inquérito do IHRU (sendo por isso valores ‘estimados’), no segundo caso estamos perante um processo por natureza muito mais detalhado, com objectivos muito concretos e que assume já, para os próprios municípios, um significado mais material”, explica o ministério.

O ministério recorda que há 112 municípios com acordos assinados e em execução (mais três acordos com empresas municipais).

E reconhece que a habitação clandestina “é ainda, infelizmente, um fenómeno presente na nossa sociedade, agravado pela crise pandémica, que também o tornou mais visível, sublinhando a necessidade de concretizar não só o Programa 1.º Direito em todo o território, mas também a necessidade de melhorar o acesso à habitação por parte de famílias com rendimentos intermédios, contribuindo para a promoção de soluções habitacionais estáveis, dignas e adequadas”.