12.5.22

Médicos de família podem ser penalizados se tiverem utentes que interromperam voluntariamente a gravidez

Ana Maia, in Público

Proposta introduz novos critérios de avaliação para profissionais de saúde que trabalham nas Unidades de Saúde Familiar modelo B já validados pela DGS. Nas chamadas actividades específicas as equipas podem receber, de acordo com o cumprimento de metas, um valor adicional ao ordenado base. Ministério da Saúde ainda está analisar documento.

Os médicos de família, assim como os restantes elementos das equipas, podem vir a ser avaliados por interrupções voluntárias da gravidez (IVG) realizadas pelas utentes da sua lista e pela existência de doenças sexualmente transmissíveis nas mulheres. Em causa está a introdução de novos critérios de avaliação nas Unidades de Saúde Familiar modelo B (USF-B) nas actividades específicas, que é uma componente que permite às equipas receber, de acordo com o cumprimento de metas, um valor adicional ao ordenado base.

A proposta dos novos critérios foi enviada para o Ministério da Saúde, que ainda a está a analisar. O coordenador para a reforma dos cuidados de saúde primários diz que o objectivo é elevar a qualidade, aumentando a disponibilidade de consultas e de informação e com isso diminuir gravidezes indesejadas. E que o impacto na componente variável do ordenado é pequeno.

Existem dois modelos de USF (uma forma de organização dos centros de saúde). No modelo B o ordenado das equipas divide-se em duas componentes: uma remuneração fixa, associada ao número de utentes inscritos e ao horário semanal de trabalho, e uma remuneração variável, associada ao cumprimento de vários critérios, divididos por seis actividades específicas. O atingir ou não dessas metas vai influenciar a remuneração variável das equipas no ano seguinte.

“O objectivo do planeamento familiar é evitar a gravidez indesejada e [os médicos] têm de ser avaliados por isso. A qualidade é evitar a gravidez indesejada. É preciso criar condições para que existam consultas de pré-concepção, consultas para quem quer iniciar a sua vida sexual. Se não tiver este indicador [de ausência de IVG] nunca vou criar estímulos para isso”, João Rodrigues, coordenador para a reforma dos cuidados de saúde primários

Estas seis áreas foram definidas em 2007 - estão agora em processo de revisão – e contemplam a vigilância da mulher em idade fértil em planeamento familiar, a vigilância das crianças no primeiro e no segundo ano de vida, a vigilância de grávidas de baixo risco, dos diabéticos e dos hipertensos.

O recente anúncio, num fórum online de médicos, da introdução de novos critérios, nomeadamente na área do planeamento familiar, “gerou grande discussão”, refere Carla Silva, coordenadora da Comissão Nacional de Medicina Geral e Familiar da Federação Nacional de Médicos (Fnam). Em causa está o critério de ausência de interrupção voluntária da gravidez (IVG), nos 12 meses anteriores à data de referência do indicador, e também a ausência de doenças sexualmente transmissíveis na mulher.

“Isto foi uma surpresa completa. Contestamos estes indicadores, que entram nas actividades específicas. Isto tem implicações na remuneração e nada foi discutido com os sindicatos”, refere a médica, salientando que as actividades específicas das USF-B foram definidas por um decreto-lei e que este não sofreu qualquer alteração. Esta questão será colocada na próxima reunião que a Fnam vai ter no Ministério da Saúde, no dia 18 deste mês.

Os novos critérios foram “propostos pela ACSS, validados pela DGS” e o Grupo de Apoio às Políticas de Saúde na área dos cuidados de saúde primários “genericamente validou esta proposta”, que foi enviada ao Ministério da Saúde no final do ano passado, explica o coordenador para a reforma dos cuidados de saúde primários, João Rodrigues.

“O objectivo do planeamento familiar é evitar a gravidez indesejada e [os médicos] têm de ser avaliados por isso. A qualidade é evitar a gravidez indesejada. É preciso criar condições para que existam consultas de pré-concepção, consultas para quem quer iniciar a sua vida sexual. Se não tiver este indicador [de ausência de IVG] nunca vou criar estímulos para isso”, diz o médico.

“Este indicador pode e deve ajudar na aposta que se deve fazer na prevenção. Cientificamente como é que posso medir a actividade preventiva? Só posso medir se tenho ou não IVG, porque o resultado final é esse”, diz João Rodrigues, reconhecendo que este resultado não depende só do trabalho do médico. Questionado sobre se este critério pode originar pressão sobre as mulheres, remata: “Se isso acontecer é gravíssimo.”

“Penso que o que se está a tentar fazer é ter alguns princípios consensuais do que deverá ser o caminho a seguir”, diz André Biscaia, presidente da Associação Nacional das USF. Quanto à IVG, considera que “o que está ali proposto é que junto das mulheres se faça tudo para que não aconteça uma gravidez indesejada”. “Mas ainda não conseguimos fazer a simulação para perceber se tem impacto” no salário, diz, tendo em conta que nesta proposta de revisão dos critérios “alguns indicadores poderão ter uma graduação”, permitindo que uns compensem os outros.

O médico refere que uma das questões que “levantou mais celeuma” foi na área da saúde infantil. “Se a criança for à urgência sem indicação do médico de família e não ficar internada, também somos penalizados”, diz, referindo que vão enviar perguntas à Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) sobre os critérios. “Seria boa prática divulgar qual a evidência e os objectivos para fazerem estas alterações e a simulação dos seus impactos.”
Exposição à Comissão de Igualdade de Género

Mesmo não estando ainda a ser postos em prática, Carla Silva salienta que está previsto que os critérios serão monitorizados ao longo deste ano e que poderão ter aplicabilidade a partir de Janeiro de 2023. “Achamos que estes dois indicadores podem provocar uma prática de desigualdade de género nos cuidados de saúde primários. Na IVG diz que a ponderação é zero. Então qual é a intenção? Esta questão não podia estar ali”, aponta, adiantando que a Fnam enviou uma exposição à Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.

A Fnam “repudia vivamente a desigualdade de género introduzida com esta vigilância”, lê-se no documento, a que o PÚBLICO teve acesso. Na exposição, o sindicato considera ainda que “a monitorização das doenças sexualmente transmissíveis nas mulheres - monitorização que não tem paralelo nos homens - configura uma discriminação de género inaceitável”.

“Igualmente, a inclusão da interrupção voluntária da gravidez neste domínio é sinal de um retrocesso civilizacional e ideológico incompreensível, responsabilizando os profissionais de saúde familiar por uma decisão pessoal, que interessa apenas às pessoas com útero, e traz uma dimensão de penalização às equipas dos Cuidados de Saúde Primários”, diz na missiva, na qual defende “a reformulação imediata desta variável considerando o que objectivamente significa, independentemente da intencionalidade dos seus autores”.

“A existência de uma mulher com IVG é interpretada como o médico de família não ter feito planeamento familiar. É um indicador que não é aceitável”, diz Maria João Tiago, membro do Secretariado Nacional do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), considerando que a introdução destes indicadores tem a ver com “dificultar o desempenho, quando deveriam ter como objectivo melhorar a prática clínica”. “Existe uma lei [da despenalização do aborto] que tem de ser cumprida. A pessoa não pode ser penalizada pelo cumprimento da lei. O SIM vai chamar à atenção para a insensatez deste indicador”, diz Jorge Roque da Cunha, referindo que o que lhe parece haver aqui é “mais falta de bom senso” com “indicadores que procuram aumentar mais a burocracia do que responder aos utentes”.

O secretário-geral do SIM recorda que existem outros indicadores usados para a avaliação do desempenho geral de todos os centros de saúde, discutidos na comissão técnica nacional – onde estão também os sindicatos – que também penalizam os médicos. Dá o exemplo da realização de mais consultas abertas do que o previsto e a inscrição de um bebé numa lista de utentes da qual o pai faz parte mas a mãe não. “Somos penalizados porque é considerada uma gravidez não acompanhada. Consideramos que esta comissão técnica deve sofrer uma remodelação”, diz
Promover o acesso e premiar a qualidade

João Rodrigues recusa a ideia de penalização. “O que existe é uma discriminação positiva. Quem faz bem, recebe um suplemento”, diz, já que além do ordenado base existe esta componente remuneratória associada à qualidade segundo indicadores da Direcção-Geral da Saúde (DGS). “95% das USF-B já atingiram o máximo [dos critérios definidos]. A proposta que se fez foi mudar os critérios. São novos critérios que têm a ver com a actualização das boas práticas”, explica. Dá o exemplo das idas às urgências pediátricas. “Se tenho uma criança inscrita tenho de ser responsável por ela. Se das 8 às 20h00, que é o meu horário, se não estou disponível, se a criança não foi vigiada, não posso ser recompensado pela qualidade.”

Quanto ao critério de ausência de doenças sexualmente transmissíveis na mulher, diz que é a mesma lógica de promoção de maior acessibilidade e de prevenção que é referida na IVG. E que o decreto-lei que define as actividades específica apenas contempla o planeamento familiar de mulheres em idade fértil. “Espero que seja introduzido um planeamento familiar para os homens”, mas para isso é preciso que haja uma alteração do decreto-lei. O grupo que coordena está a fazer a revisão destas áreas, podendo ou não haver novas introduções. São essas eventuais mudanças que diz terem de ser discutidas com os sindicatos e não a introdução de novos critérios, que a lei diz que são definidos pela DGS.

“A existência de uma mulher com IVG é interpretada como o médico de família não ter feito planeamento familiar. É um indicador que não é aceitável” Maria João Tiago, membro do Secretariado Nacional do Sindicato Independente dos Médicos (SIM)

Quanto ao peso na remuneração, o critério da IVG conta entre 5% a 10% numa das áreas e elas são seis, com um total de 110 indicadores. Por isso, o peso “na componente remuneratória é muito pequeno”. Questionado sobre se os novos critérios propostos são uma forma de reduzir salários, diz que não. “Com os critérios em cima da mesa, em relação a 2021, fizemos uma simulação e não há grande variação”, diz, lembrando a introdução de ponderações nos critérios.

O Ministério da Saúde recorda que “o grupo técnico com a missão de apresentar uma proposta de revisão dos critérios para atribuição de unidades ponderadas às actividades específicas, actualizando-os à luz das boas práticas clínicas e da valorização da gestão integrada do percurso dos utentes” foi constituído a 18 Outubro e que o mesmo “apresentou um documento de trabalho com as propostas de revisão de critérios para atribuição de unidades ponderadas às actividades específicas a 30 de Dezembro de 2021”. “Tendo em conta a tomada de posse do novo governo, a análise do documento de trabalho encontra-se em curso, não tendo sido ainda tomada uma decisão que, contudo, se prevê que ocorra ainda no mês de Maio”, esclarece.