19.4.21

A dificuldade em ter uma vida decente

Vítor Belanciano, in Publico on-line

Ter uma vida decente, sendo um cidadão modelar, com trabalho regular e honesto, sem ser uma actividade predadora, tornou-se numa genuína quimera.

É difícil vislumbrar algo mais grave — a pobreza. E, no entanto, a maior parte encolhe os ombros perante essa realidade. Ou continua a pensá-la através de associações clássicas, como se fosse só sinónimo de sem-abrigo, pessoas na penúria completa, empregados com salários miseráveis, desempregados duradouros, deficientes, doentes, idosos com baixas pensões ou pessoas e famílias em contextos de vulnerabilidade, que perante ocorrências imprevistas são atiradas para essa situação.

Esta semana foi comunicado mais um estudo (A Pobreza em Portugal – Trajectos e Quotidianos, da Fundação Francisco Manuel dos Santos) que aborda o assunto e entre as diversas conclusões diz-se que uma boa parte das pessoas em posição de pobreza tende a relativizar essa disposição, como mecanismo de defesa psicológica, recorrendo a comparações com o seu próprio passado ou com outros em situações semelhantes. E há também, claramente, envolvido neste tipo de procedimento, a vergonha. E muitas vezes o sentimento de culpa. Uma acumulação de violências. É-se pobre. E é complexo falar disso.

O que nos pode conduzir para uma realidade paralela, mais difusa, menos clássica, não comprovada por nenhuma estatística, mas que se vai impondo e que a pandemia veio expor ainda mais. Ao lado desta pobreza de teor tradicional, emergem novas disposições, com cada vez mais pessoas vulneráveis no limiar de situações de grande desconforto. Não são pobres no sentido clássico, mas constituem uma massa seres humanos (precários ou com ordenados miserabilistas, ligados às mais diversas actividades, do ensino à comunicação ou serviços) incapazes de ter uma vida decente, escondendo-se tantas vezes atrás da cortina da vergonha social, sendo até encorajados entre os seus pares em não revelar a sua posição fragilizada. Contam ansiosamente os tostões para pagar a renda da casa, a saúde, a electricidade, a comida, a educação e a pensão dos filhos e nem sempre chega. Essa é a verdade: ter uma vida decente, sendo um cidadão modelar, com trabalho regular e honesto, sem ser uma actividade predadora, tornou-se numa genuína quimera.

E o mito perdura: que essa situação é apenas responsabilidade individual. Não trabalhou o suficiente, ou não foi perspicaz, ou foi gastador. Histórias. A meritocracia é um sofisma que convém aos que estão bem na vida do ponto de vista material, porque lhes reforça o seu suposto esforço e importância, mas nesse movimento esquece-se os que igualmente vigoraram, estudaram e têm valia, mas que apesar de trabalharem com brio não saem de uma espiral onde a mobilidade social vai sendo inexistente.

Vivemos no interior de um sistema socioeconómico falhado, onde a precariedade se naturalizou, incapaz de uma redistribuição de recursos eficaz, seja através de salários, ou das transferências do Estado, e ainda por cima culpabilizamos os que estão prostrados no chão ou fala-se com desdém da situação. O desapreço com que alguns discorrem sobre lógicas de protecção social diz muito de um país servil com os poderosos e altivo com os desprotegidos. Isso é que nos devia fazer corar de vergonha.

Os menos favorecidos não querem esmola, querem dignidade, e têm direito a ela. Vale a pena continuar a batalhar pela protecção social ou por um rendimento mínimo adequado que assegure uma existência decente para todos, mas, em simultâneo, quanto mais a própria ideia de pobreza se vai transformando e disseminando, é preciso revolver nas lógicas reprodutoras que provocam desequilíbrios e desigualdades gritantes. Há muita gente que não está interessada nisso. Mas sem isso nada de essencial mudará.