15.4.21

A fronteira invisível da pobreza

Nuno Francisco, in Jornal do Fundão

O jornal Público deu-nos, na segunda-feira, um breve retrato da pobreza em Portugal, com base no estudo “A Pobreza em Portugal – Trajetos e Quotidianos” realizado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Uma das principais conclusões é a de que mais de um terço dos pobres em Portugal são trabalhadores, a maioria dos quais com vínculos estáveis e salários certos ao fim do mês. Ou seja, ter emprego não é garantia absoluta para fugir à pobreza na qual se entrava oficialmente, em 2019, (ano dos dados mais recentes) com rendimentos abaixo de 540 euros por mês. De resto, são mais que os reformados, que representavam 27,5 por cento do total de pobres, 26,6 por cento no caso dos trabalhadores precários e 13 por cento no que diz respeito a desempregados.

Globalmente, cerca de 16 por cento da população era considerada pobre. É muito fácil olhar para estes números e sentir que ainda muito há a fazer para atenuar a linha que nos separa de uma vida digna e confortável e a tragédia da pobreza, que não se revela apenas nas questões económicas e acesso a bens, mas também nas implicações psicológicas. Para quem trabalha, para quem está reformado e para quem está desempregado o risco está sempre presente, mesmo que momentaneamente nos consideremos a salvo de um dia cair abaixo dessa fronteira invisível. O ponto onde estamos hoje está longe de ser o ponto de onde partimos, naturalmente.

Não valerá a pena avançar aqui com os indicadores económicos e sociais com o que o país se confrontava no dia 24 de abril de 1974. Quem ainda tem a memória desses tempos será a melhor testemunha do que éramos e do caminho que foi sendo feito em democracia. E mesmo dentro da própria democracia: Se hoje, 16,2 por cento dos portugueses estão abaixo da linha da pobreza, em 2003 eram 20 por cento. É certo que a estatística não coloca pão na mesa de ninguém e aos muitos milhares que se encontram em profunda situação de fragilidade, tudo isto diz muito pouco, ainda para mais no atual contexto onde o abismo da pobreza já capturou muitas famílias e ameaça devorar muitas outras. Nestes casos, como em muitos outros, não se espere que seja apenas o mercado a tratar dos equilíbrios e a corrigir as barreiras estruturais cavadas entre os mais ricos e os mais pobres.

O funcionamento da economia de mercado é, até prova em contrário, aquela que mais contribuiu para elevar os padrões de vida das sociedades livres. Mas esses padrões não são apenas visíveis e sustentáveis pelo funcionamento da economia per si, mas quando acompanhados por uma eficaz modelação de um Estado determinado em atenuar as inevitáveis desigualdades que o funcionamento da economia origina. Não há harmonia nem sã convivência social sem se combaterem os declives sociais. Se a economia deve ser baseada na livre iniciativa, ela também deve ser responsável e responsabilizável; uma economia comprometida connosco e com o planeta.

E esse é um papel de responsabilidade social de quem investe e emprega, mas também a de um regulador: um estado decidido – e não autoritário -; interventivo – e não estatizante – , a quem cabe desenhar e aplicar os mecanismos, nomeadamente fiscais, de redistribuição e de apoio. Só há Estado a mais quando a sua presença apenas é notada pelo discutível uso dos fundos públicos e pelo peso desmesurado do qual apenas resulta ineficiência.