23.4.21

Alunos que se distanciaram da escola “começam a pôr a cabeça de fora”. Interesse levará “anos a recuperar”

Maria João Lopes, in Público on-line

Linha Crianças em Perigo, criada na pandemia, recebeu, de Maio de 2020 até 4 de Abril, 875 chamadas. Pelo formulário online chegaram, desde Junho, 1456 alertas. Número de alunos que as CPCJ encaminharam, no primeiro confinamento, para as escolas de acolhimento foi de 194. No segundo, subiu para 1250.

Crianças a quem a escola perdeu o rasto no ensino à distância, situações em que tiveram de ser accionados diferentes meios para contactá-las. Jovens sem espaço ou secretária para estudarem em casa. Ou a quem faltava estabilidade e rotinas familiares. Alunos que, em vez de estarem nas aulas online, estavam a tomar conta dos irmãos mais novos, também sem creche ou escola. Jovens que se desligaram. Dois confinamentos depois, o impacto da pandemia em crianças em situações de maior vulnerabilidade, que já existiam antes, é mais um desafio a somar a outros que as escolas têm pela frente. “Em alguns casos”, admite o presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares, Manuel Pereira, “vai demorar anos a recuperar” não só as aprendizagens, mas o interesse perdido.

As respostas do sistema para acautelar os direitos de crianças em situações de perigo ou risco de abandono escolar, entre outras, nos períodos em que as escolas estiveram fechadas, tiveram de ser afinadas. O número de alunos que as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) encaminharam para as escolas de acolhimento aumentou entre o primeiro e o segundo confinamentos, de 194 para 1250. Em causa estavam crianças em contextos de perigo agravado, por não lhes ser assegurado o direito à educação ou não lhes ser garantido um ambiente livre de violência.

Quanto à Linha Crianças em Perigo, criada na pandemia, recebeu desde Maio de 2020 e até 4 de Abril 875 chamadas; já o formulário online, disponível no site da mesma comissão, recebeu, entre Junho do ano passado e 4 de Abril deste ano, 1456 alertas. A maioria diz respeito a situações de perigo em que crianças e jovens se encontram, e que podem ir de violência doméstica, a maus-tratos físicos e psicológicos, até abandono escolar, entre outras, e são sobretudo feitos por vizinhos ou familiares.

“Os números são bastante significativos, relevantes, principalmente imaginando que não tínhamos estas respostas há um ano. Pode acontecer mais de uma comunicação para a mesma situação de pessoas diferentes, mas geralmente são situações diferentes. São números bastante elevados. Sem estas respostas muitas crianças estariam numa situação de perigo invisível, sem serem protegidas”, diz a presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens, Rosário Farmhouse.

De acordo com esta responsável, o aumento de crianças encaminhadas para escolas de acolhimento entre um confinamento e o outro pode ser explicado também pela afinação do sistema de resposta: “Neste segundo confinamento já havia critérios de triagem, foi mais fácil encaminhar para as escolas de acolhimento. Neste momento, a maioria destes alunos encaminhados já voltou à escola de origem.”

No início, foi preciso fazer uma “triagem” dos casos, criou-se um semáforo e aqueles que estavam no “vermelho” seguiram. “Em Março estávamos todos expectantes, esta medida de enviar para escolas de acolhimento veio em Maio, mais perto do final do ano lectivo. Era tudo novo, foi um ano atípico”, explica Rosário Farmhouse. Era, ainda, uma altura em que “também havia um maior receio de contágio por parte das famílias”, tendo-se tentado, em alguns casos, “em conjunto com as famílias”, encontrar outras “soluções para as crianças entre Maio e Junho”. Situações houve ainda, durante os períodos de ensino à distância, em que outras estruturas, como juntas de freguesia, apresentaram soluções, nota.

Aquelas crianças foram parte das encaminhadas. Houve mais a frequentar estes estabelecimentos, abertos inicialmente para receber os filhos dos profissionais essenciais. Na última semana de aulas do 2.º período foram para estas escolas uma média de 8500 estudantes por dia, cabendo aqui alunos com necessidades educativas especiais, bem como aqueles para quem o ensino à distância estava a ser considerado ineficaz ou que se encontravam em risco de abandono.

O presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas, Filinto Lima, recorda que, num dos casos do seu agrupamento, foram os pais que pediram para o filho ir para aquelas escolas, explicando que em casa não tinha espaço “digno”, com uma secretária, para passar algumas “horas” a estudar. Num outro, por exemplo, tanto o director de turma como o próprio director do agrupamento ligaram para casa do aluno, mas havia “um total desinteresse” da parte dos pais, que “não queriam saber se havia aulas, se [o filho] estava online a acompanhar” ou não. A GNR, através da Escola Segura, foi “saber o que se passava”. O jovem tinha computador e acesso à Internet, mas foi preciso alertar os pais para a necessidade de exerceram algum “controlo parental”. O aluno, conta, regressou às aulas online.

Rosário Farmhouse reconhece o impacto que os confinamentos tiveram em crianças em situação de maior vulnerabilidade: “Tem consequências enormes, não são imediatas, mas em situações mais vulneráveis – que se encontram em qualquer estrato social, cultural e económico, como as de violência doméstica, de consumos, de saúde mental, que são transversais –, com o isolamento, o encerramento de postos de trabalho, as situações ficaram ainda mais frágeis. O ensino à distância exige não só ter equipamentos. Temos contextos familiares em que não há estabilidade suficiente nem organização para que as crianças possam estudar. Há famílias que não têm horários, rotinas, se são crianças muito pequenas, se os adultos têm de estar presentes, pode ser complicado. Houve situações em que as CPCJ entenderam que não tinham condições, mesmo que tivessem as condições físicas para esse estudo”, diz. Admite preocupação com eventuais casos de abandono escolar: “É verdade que, em crianças que já não tinham relação de grande proximidade com a escola, a probabilidade de se desligarem no ensino à distância é maior.”
Casos triplicaram

No agrupamento de escolas Manuel da Maia, em Lisboa, o número de casos de alunos em situação considerada vulnerável e em risco de abandono escolar praticamente triplicou: no início do ano lectivo, em Setembro, o agrupamento tinha identificado cerca de dez alunos e sinalizado esses casos à CPCJ. A partir do confinamento iniciado em Janeiro e até ao início de Abril, o número passou para cerca de 30, embora a maioria não tivesse sido sinalizada àquela entidade e se tivessem tentado outras estratégias para resolver as situações. Ainda assim, houve casos em que, mesmo estabelecendo contacto, os alunos continuavam a não demonstrar a assiduidade esperada no ensino à distância. Este agrupamento, com 863 alunos do pré-escolar ao 9.º ano, está abrangido pelo programa TEIP (Territórios Educativos de Intervenção Prioritária).

“Há situações em que deixámos de saber onde andavam e o que faziam. Mas conseguimos recuperar a maioria, com uma equipa de três psicólogas, uma assistente social e os directores de turma. Quando alguém dava por falta dos alunos muitos dias, nas aulas online, soavam os alarmes e contactávamos por vários meios, emails, telefone, deslocações a casa de alunos, tentando chegar a pessoas que os conheciam. Quando não temos sucesso, sinalizamos à CPCJ, mas, mais cedo ou mais tarde, acabamos sempre por saber algo dos alunos que não estavam a aparecer”, relata o director do agrupamento, Luís Mocho. Este responsável acredita que, com o regresso ao ensino presencial, o número de casos deverá voltar a ser cerca de dez: “E vamos tentar que esses reduzam também.”

O director garante continuar a monitorizar a situação, tentando verificar se os alunos em causa estão a regressar à escola. Muitos dos que se poderão ter isolado ou distanciado nos confinamentos, “com o regresso às aulas presenciais, começam a pôr a cabeça de fora”, diz. “Mesmo nos alunos mais desmotivados ou que perderam o fio à matéria, quando regressam às aulas presenciais, começam a retomar aos poucos o ritmo, e os que tinham dificuldade são mais fáceis de apoiar.” Neste momento, o “importante é estabilizar estes alunos”, defende, admitindo, no entanto, ser “dificílimo recuperar, agora, o interesse, o gosto pela escola, a utilidade da escola”. E acrescenta: “Em educação não se faz nada de um dia para o outro.”

O presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas, Filinto Lima, não tem dúvidas de que, quando os alunos “estão à distância, naturalmente, há mais probabilidades de escaparem” do “radar”. Apesar de, “por norma”, se conseguir “resolver o problema”, admite que possa haver situações “em que as escolas tentaram tudo, recorreram à CPCJ”, e que, mesmo assim, estejam “por regularizar.” O presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares, Manuel Pereira, também nota que, durante os confinamentos, houve meios para ir ao encontro dos alunos que estavam em risco de abandono ou que não apareciam nas aulas à distância e que tal “foi feito”. Ainda assim, reconhece que o ensino à distância poderá ter afastado, “em termos de interesse e de preocupação”, alguns alunos da escola, sobretudo entre aqueles que já estavam em situações de vulnerabilidade. “Em alguns casos”, reconhece, “vai demorar anos a recuperar” o interesse e as aprendizagens perdidos.

Apesar de, no ano passado, a taxa de abandono escolar precoce ter atingido, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, o valor mais baixo de sempre (8,9%), o risco é reconhecido pela tutela, em contexto de pandemia. Numa resposta conjunta do Ministério da Educação (ME) e do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS), enviada ao PÚBLICO, a tutela recorda que, no ano passado, foram sinalizadas pelas escolas 1900 situações às CPCJ – mais 200 do que ano anterior – e garante que “o processo de matrículas acompanhou, com rigor, a verificação dos números de alunos, para se detectar uma eventual redução”. A mesma resposta sublinha ainda que, “no âmbito da prevenção do abandono, e para fazer face à possível subida no contexto de pandemia, o ME desenvolveu um conjunto de medidas”, envolvendo municípios, juntas de freguesias, CNPDPCJ, entre outras entidades, bem como, e em articulação com o MTSSS, “uma metodologia integrada de actuação com as escolas com o objectivo de identificação e sinalização de situação de risco/perigo”.