28.10.22

“Nunca foi tão difícil ser jovem”. Ou professor, ou músico, ou agricultor ou... empresário

Daniela Carmo, Patrícia Martins, Inês Matos e Carlos Dias, in Público online

Nas vésperas do Conselho de Estado, um trabalhador precário, um professor, um agricultor e um pequeno empresário contam como olham para o futuro próximo, com a crise no horizonte.

O planeta não tem plano B e, por isso, o agricultor António Tavares tem ainda mais receio da crise climática (e da falta de água), do que da crise económica. A primeira tem impactos sequenciais e a longo prazo que o deixam apreensivo, mesmo que a segunda esteja já a bater à porta e a pedir alguns ajustes. E a pedir também planos B, como o que o próprio agricultor alentejano desenhou para reduzir os custos da sua produção ou como o que o músico Luís Coelho, de Penafiel, procurou para fazer face à precariedade laboral.

O desassossego em relação ao futuro é transversal a várias áreas. André Torres, pequeno empresário no sector da restauração, em Gaia, tornou-se patrão e empregado para reduzir gastos. Mesmo assim, o seu receio é ser obrigado a “fechar” as portas. O optimismo não reina, nem quando quem fala é um jovem funcionário do Estado, com supostamente maior estabilidade laboral. Supostamente porque os 17 ou 18 mil euros que ganha por ano como professor (a andar pelo país) não dão para Tiago Leitão planear uma vida. “Nunca foi tão difícil ser jovem”, diz o docente de 27 anos.

Eis quatro casos que mostram como a degradação da situação socioeconómica do país, que Marcelo Rebelo de Sousa quer discutir no próximo Conselho de Estado, está a preocupar os portugueses. Mesmo com as ajudas anunciadas para famílias e empresas.

Precário, mesmo com plano B

Sempre sonhou ser músico, mas reconhece que, actualmente, a profissão que escolheu significa viver na precariedade. “Sendo músico profissional, a precariedade já faz um pouco parte da própria profissão. O mercado está muito cheio e não existe oferta em Portugal que consiga dar emprego a todos os músicos. Além do que, no caso do meu instrumento, não existe lugar de orquestra, logo aí tira também muito emprego”, descreve Luís Coelho, saxofonista, de 28 anos.

O sonho tornou-se realidade em 2018, quando o jovem concluiu os estudos superiores em Música, em 2018. Desde então, tem dado os primeiros passos na carreira, sem grande rentabilidade. “Enquanto músico tenho tido alguns concertos, mas se formos a ver quanto é que retiro desses concertos em termos monetários é muito reduzido, não dá nem para pagar os gastos. Estou formado há quase cinco anos e ainda estou a pagar para tentar singrar na minha profissão”.

Luís precisou de um plano B. Por isso, além de músico, inscreveu-se para leccionar actividades de enriquecimento curricular em algumas escolas de Penafiel. O ensino ajuda-o quando não há concertos — é um complemento. Mas, o plano B também não lhe dá estabilidade financeira. “Dou nove horas de aulas durante a semana e isso perfaz mais ou menos 400€ por mês. Para um jovem de 28 anos, a ganhar metade do ordenado mínimo, é uma loucura”, descreve.

Mesmo sendo músico e professor, Luís não consegue ter uma vida pessoal e financeira estável e não consegue ver o copo meio cheio em relação ao futuro próximo. “A minha profissão, para a qual estudei, a qual quero exercer, não me permite ter uma vida digna. Eu não consigo contrair um crédito, não consigo alugar uma casa, não consigo constituir família e ainda estou a viver em casa dos meus pais. E, se olhar para esta realidade e para o montante que me permite viver sozinho, tão cedo não consigo fazer isso”, afirma, desesperançado em relação ao que ouve dizer que aí vem: a crise inflacionária.

Os apoios do Governo, nomeadamente, o Estatuto dos Profissionais da Cultura, é algo com que o saxofonista também não pode contar. “Como músico, não tenho uma agenda programada. Neste momento, tenho mais dois concertos até Novembro e não sei quando é que vou ter mais. É uma coisa que vai surgindo. E nos últimos seis meses, tive quatro concertos, o que significa que não tenho acesso ao estatuto, porque não tenho uma actividade regular que me permita aceder a esse estatuto”.

Apesar do desânimo com que vê actualmente o estado da profissão, Luís considera que o aumento do Orçamento de Estado para a Cultura “mostra realmente que o Governo está a mudar uma página em Portugal, porque neste momento os artistas estão a trabalhar muito contra a corrente, e este aumento significa que ainda há alguma esperança para o futuro”. P.M.

A dupla crise na Agricultura

Pensar no futuro, mesmo a curto prazo, tornou-se para António Tavares, pequeno agricultor em modo de produção biológico, um exercício de gestão repleto de incertezas. “É muito complicado planear o futuro quando as alterações climáticas nos trazem tantos receios”, conjectura.

Nem mesmo o aumento desmesurado nos factores de produção (que em modo biológico são superiores aos que estão a ser sentidos na agricultura) o preocupam tanto como os efeitos das alterações climáticas que podem ser devastadores. “Assusta-me pensar que um dia me pode faltar a água de Alqueva”. É este o seu receio maior quanto ao futuro, mesmo comparado este cenário crítico com a diminuição no número de encomendas recebidas. “Nem foi preciso aumentar o preço dos nossos produtos” observa o agricultor. Outros encargos e restrições no orçamento familiar obrigam a optar por produtos não biológicos, porque estes são, inevitavelmente, mais caros.

A actividade da pequena empresa de António Tavares está baseada na entrega de cabazes com produtos hortícolas na casa dos clientes. “Nós produzimos e distribuímos”, acentua, realçando o “enorme esforço” que é feito para manter a autonomia, quando os combustíveis aumentam. “Quase de certeza vamos ter de subir os preços”, antecipa, embora ainda não se reflicta no que entrega aos clientes.

“Estamos a ser bastante afectados pela crise” reconhece o pequeno agricultor, admitindo que já foi forçado a fazer escolhas: os produtos que têm menos venda já foram retirados do cabaz e já negociou a partilha de encargos com a empresa do Oeste que fornece a fruta. “Eles transportam-na até Évora e nós vamos lá buscá-la” para assim dividir o custo da deslocação.

“Olhando para o futuro, honestamente e na parte agrícola, não é nada promissor”, salienta António Tavares, dando um exemplo: “Tenho um acordo com um pequeno produtor pecuário que traz o seu rebanho para a minha exploração para a limpar de ervas e matos e ao mesmo tempo fertilizar os terrenos”. Com a seca prolongada, associada às altas temperaturas ambiente e fraca precipitação atmosférica, os animais deixaram de ter pasto.

A situação que é recorrente tornou-se dramática para os donos dos rebanhos de ovelhas e cabras. Deixaram de ter fundo de maneio para a aquisição de rações que estão a um preço inacessível, uma situação que se tornou dramática devido à falta pasto para os animais. Sem condições para sustentar os rebanhos resta-lhes vender os borregos abaixo do preço do que gastaram com eles para que os animais não morram à fome.

“A agricultura, tal como está, passou a ser uma actividade muito complicada e vai obrigar-me a ponderar um plano B, para garantir a sustentabilidade da minha família”. C.D.
Professor com a vida em suspenso

A procura por um horário completo numa escola, capaz de garantir um ordenado digno e, ao mesmo tempo, contribuir para a progressão na carreira, fez Tiago Leitão, professor de História, rumar de Matosinhos — no distrito do Porto — a Lisboa no início deste mês. “Felizmente” tinha já familiares a residir na capital que o acolheram. “Foi-me mais fácil porque tenho esse suporte familiar, mas há muitos professores que não têm isso e é um problema porque é uma mudança muito grande, principalmente por estes dias” de crise, reflecte.

A maior despesa, que seria a da habitação, ficou assim adiada. Mas nem por isso o professor, de 27 anos, deixa de lado a hipótese de encontrar uma casa, ou um quarto num apartamento partilhado, para onde se possa mudar num futuro próximo.

“A expectativa seria, no máximo, sair de casa dos meus tios até Janeiro”, afiança, ao mesmo tempo que nota que “os preços são caríssimos”. “Viver aqui [em Lisboa] sem ajudas de custo é muito complicado e também não quero estar numa situação em que perco dinheiro, como acontece com colegas meus.”

Se, por um lado, o conforto de poder viver com familiares contribuiu para a mudança para Lisboa se efectivar, por outro lado, Tiago Leitão fê-lo também a pensar na poupança de algum vencimento. “A verdade é que nós, jovens, não conseguimos ter dinheiro suficiente para comprar e pagar uma casa e, por isso, andamos a pagar rendas exorbitantes a senhorios por casas partilhadas com desconhecidos, mesmo depois dos 30 anos”, explica. “Nunca foi tão difícil ser jovem.”

A subida da inflação sente-a principalmente no mercado imobiliário: “Sempre que faço uma pesquisa por casas ou quartos aquilo que se encontra são preços caríssimos e senhorios que pedem duas ou três cauções logo à partida, mais os três recibos de vencimento anteriores e outras tantos coisas que, para muitos jovens, não são fáceis de adiantar”.

Também no combustível sente o aumento dos preços. “É impensável para mim levar o carro nas viagens de fim-de-semana entre Lisboa e Porto. Vou de comboio ou de autocarro, principalmente de autocarro porque se comprar com alguma antecedência sai mais barato.”

Os gastos são, de facto, pensados ao pormenor na esperança de conseguir uma almofada financeira mais confortável e, no horizonte, mantém-se a esperança de um dia conseguir comprar casa.

“O objectivo agora é o de conseguir pôr algum dinheiro de lado e, juntamente com a pessoa com quem estou, mais tarde dar a entrada para uma casa. Só que as entradas de uma casa são de 10% ou 20%. Agora não há casas a 150 mil euros, mas 10% disso são 15 mil euros e para poupar 15 mil euros, num ano por exemplo, é complicado. Contas feitas, ao final do ano um professor ganha cerca de 17 ou 18 mil euros, isso significa que temos de trabalhar um ano praticamente sem qualquer despesa para poupar esse montante”, remata.

Quanto às medidas do Governo para combater o aumento dos preços, como o apoio extraordinário de 125 euros, o professor de História diz que “são suficientes durante um mês, até o dinheiro acabar”. “E depois?”, questiona. “As pessoas tiveram uma ajuda com a inflação, mas a inflação continua elevada. E depois? As pessoas, na sua maioria, estão a perder poder de compra. Os meus alunos mais novos foram capazes de me dar exemplos concretos de perda do poder de compra, situações que sentem que os pais estão a ter”, exemplifica.

“Reduzir os preços dos transportes” ou “comida para toda a gente” foram alguns dos exemplos de “acções capazes de mudar o mundo” dados pelos alunos de Tiago Leitão. “Eles não me disseram que passaram fome, mas sinto que, ao pensarem no assunto e ao terem essas questões, é porque já estão a ver alguém a passar por isso, se não forem mesmo eles.” D.C
A luta do patrão-trabalhador

Há meses que André Torres, pequeno empresário na área da restauração, repara nas consequências que a escalada de preços e a crise trouxeram ao seu negócio. “Em termos de facturação, as pessoas já não gastam tanto como gastavam, estão mais limitadas a gastar dinheiro. Isto está muito complicado”, desabafa. Dono do café e snack-bar Newglass, aberto há 12 anos em Vila Nova de Gaia, André receia os tempos que se aproximam devido ao impacto da inflação.

Para tentar amenizar as quebras, foi necessário fazer algumas alterações no funcionamento do café. Viu-se obrigado a dispensar um funcionário — agora, tem apenas dois, contando com ele, sendo que é um “patrão trabalhador” —, teve de “aumentar os preços” dos produtos, uma vez que também os compra a valores superiores, e de “alterar certos produtos” e “procurar os melhores preços” entre os diferentes fornecedores. Além disso, foi necessário “reduzir os dias de trabalho”, passando a fechar as portas do estabelecimento dois dias por semana. Também começou a “fazer promoções, para as pessoas poderem gastar um bocadinho mais”.

Após dois anos de pandemia, em que o negócio esteve limitado e foi preciso fazer um esforço para manter as portas abertas, André não está optimista. “A partir do início do próximo ano vai ser complicado, acho que vai ser ainda mais complicado. São os preços a aumentar, as pessoas têm medo de gastar e tudo isso conta, não há dinheiro para movimentar”, refere.

O proprietário de 34 anos considera que as medidas que o Governo tem vindo a anunciar para apoiar os portugueses não são suficientes. “Isto de dar os 125 euros, acho que isso nem cabe na cabeça de ninguém, é enganar…”, começa por dizer. “Agora, estão-nos a dar, mas a partir do ano que vem vão-nos tirar. O Governo também se aproveita um bocadinho com a guerra”, conclui.

Com o aumento dos gastos constantes e com a imprevisibilidade dos próximos meses, André Torres confessa que o seu “maior receio é fechar”. Para que isso não aconteça, considera que devia haver mais apoios para que as empresas não fechassem”, como por exemplo “reduzir os impostos, reduzir o IVA, reduzir essas coisas que realmente aumentaram muito e que têm muito peso”.

Assim, com as constantes oscilações dos preços e com o poder de compra dos clientes a diminuir, André está apreensivo quanto aos meses que se aproximam e ao início do próximo ano. Só aí considera que se poderão ver, ou não, “melhoras”. Até lá, é “lutar”. I.M.