8.11.13

Liberta a bondade que há em ti

Texto de Rute Martins, in Público on-line (P3)

Paremos para pensar nos milhares de pessoas que continuam a ser vítimas e que não têm ninguém que as defenda. Podem ao menos ajudar velhinhos a atravessar a rua? Obrigada

O mundo já foi – e nunca deixará de ser – testemunha de actos de solidariedade, bondade e compaixão. Mas porque raio é que o homem tem de primeiro “fazer o mal” para depois “fazer o bem”? Mas são histórias como esta que mostram que (bem) lá no fundo podemos não ser uma causa perdida.

No mês passado, li um artigo do site da BBC que falava sobre o acto corajoso de uma adolescente negra, no comício do Ku Klux Klan, em Michigan. O que se passou foi que, com 18 anos, Keshia Thomas protegeu — note-se, fisicamente — um homem que se pensava ser apoiante da organização supremacista branca. O homem, além de branco, tinha uma tatuagem com as iniciais SS e iria ser espancado por uma multidão enraivecida, até que a adolescente interveio.

Ora, influenciada por Maquiavel, cada vez mais acredito na teoria de que o homem é um ser individualista e mau por natureza. Acredito também no karma, mas esta história vai muito além das boas acções que diariamente podemos fazer. Keshia fez com que esta esperança no homem renascesse — novamente — em mim. Eu sou assim, ora tenho fé, ora a perco a meio do caminho. E aposto que não sou a única, uma vez que o seu acto extremamente corajoso continua a inspirar milhares de pessoas.

Com a polícia presente, o grupo racista foi recebido com protestos e alguém grita que entre essa multidão estaria um apoiante do Ku Klux Klan. Sem certezas de ser um apoiante, deu-se início à caça ao homem branco, com uma "t-shirt" da confederação e com “SS” tatuado no braço, o suficiente para calar qualquer dúvida — se é que havia. Caído, o homem acabaria por ser salvo pela adolescente que se atirou ao chão para o proteger. E foi aqui que senti aquele brilhozinho nos olhos e a esperança voltou. A esperança de que ainda há bondade e compaixão no ser humano, ainda que muitas vezes seja demonstrado apenas em situações catastróficas. Não ponho em causa a luta exaustiva, e por vezes sangrenta, dos negros pelos direitos civis, até porque este é um dos assuntos que consegue derreter o meu coração de gelo, mas Keshia tinha razão quando disse que “ninguém merecer ser magoado, especialmente por uma ideia”. Tal como os negros não o mereceram, nem muitas outras pessoas que, através da violência, têm sido ostracizadas e magoadas.

Também acredito que quem só conheceu a violência não sabe agir de outra forma, e por vezes é preciso que lhes surja uma Keshia Thomas para perceberem que aquele não foi o último dia das suas vidas porque foram salvos pelo inimigo. Foi esta ironia que me fez escrever sobre a bondade de Keshia: a bondade que anda aí escondida. Teremos mesmo de chegar a uma situação extrema para sermos bondosos?

Dificilmente teremos de nos preocupar com situações semelhantes neste pacato país, mas paremos para pensar nos milhares de pessoas que continuam a ser vítimas e que não têm ninguém que as defenda. Podem ao menos ajudar velhinhos a atravessar a rua, a dizer bom-dia ao motorista do autocarro ou a não serem tão egoístas no dia-a-dia? Obrigada.