3.11.16

Desmistificações: o seu a seu dono

Duarte Marques, in Expresso

Toda a ação provoca uma reação, tal como todas as políticas têm consequências de natureza diversa. Seguindo a mesma lógica, qualquer que tivesse sido o programa de ajustamento implementado na sequência do resgate da troika a Portugal, desencadeado pelo Partido Socialista, teria consequências não só para o país mas também para os portugueses. A esse propósito, surgiu a semana passada um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos intitulado “Desigualdade de rendimento e pobreza em Portugal – As consequências do sociais do programa de ajustamento”, coincidência ou não, na mesma semana em que o Bloco de Esquerda, sob o aplauso do Partido Socialista, afirmou que era preciso “perder a vergonha de ir buscar a quem está a acumular dinheiro”. Na prática, como já sabemos, o que o BE disse foi que para pagar os custos das reversões e da estagnação económica, verificado como consequência das reversões e a política económica do atual governo, era preciso "saquear" aqueles que acumulam mais poupança ou rendimentos.

Curiosamente, as primeiras leituras que foram feitas deste estudo da FFMS transmitiram a ideia que o “programa de ajustamento” incidiu sobretudo sobre as classes mais desfavorecidas, as faixas mais pobres da população, sendo que a conclusão “oficial” retirada do referido estudo tentou demonstrar que o governo anterior sacrificou as classes mais baixas para pagar os custos da crise e da bancarrota, deixando os mais ricos à margem deste esforço, o que de facto não é verdade.

Ora, lendo o estudo com atenção aos pormenores, chegamos facilmente à conclusão que não foi bem assim. Em primeiro lugar, e numa leitura inicial, verificamos que período do “ajustamento” exigido pelo memorando de entendimento é confundido com o período em que são tomadas as primeiras medidas de austeridade por José Sócrates. Para evitar que a memória nos atraiçoe é importante recordar as diferenças na austeridade entre 2009-2011 e 2012-2014. Senão vejamos:

1 - O estudo analisa a evolução dos rendimentos em Portugal no período de 2009 a 2014 (contrastando-o com o período precedente); o estudo tem como subtítulo as consequências sociais do programa de ajustamento, e é, assim, mistificador. Com efeito, o programa de ajustamento resulta de um Memorando de Entendimento assinado a 17 de maio de 2011, executado por um governo que começa a governar em 21 de junho desse ano, cujas medidas de austeridade específicas produzem efeitos a partir de 2012;

2- Se se trata de analisar “as consequências sociais do programa de ajustamento”, então dever-se-á situar o programa de ajustamento no seu correto enquadramento temporal: de 2012 inclusive a 2014. Antes do programa de ajustamento, até 2011 inclusive, há fortíssimas medidas de austeridade em vigor e a produzir efeitos, mas nada têm a ver com o programa de ajustamento, mas sim resultantes dos famosos PEC.
3- Se quisermos analisar a evolução dos rendimentos entre 2009 e 2014 e ao mesmo tempo estudar as consequências sociais do programa de ajustamento, devemos então decompor este período em dois subperíodos muito distintos: o período sob efeito das medidas de austeridade antes do MoU, de 2009 a 2011, e o período sob efeito das medidas de austeridade especificamente decorrentes do MoU, de 2012 a 2014 (na verdade ambos os períodos com responsabilidade do PS, o primeiro porque estava, a governar e segundo que resulta do MoU negociado e acordado pelo Governo do Partido Socialista); como se verá, não se trata apenas de dois períodos com contextos políticos relevantes para o objeto de análise muito diferentes: os efeitos sobre os rendimentos e a sua distribuição são muito diferentes também.

Seria útil que esta análise fosse feita, porque, ao que parece, (feita pela decomposição dos dois períodos atrás referidos) até 2011, terão sido as classes de rendimentos mais elevados as menos afetadas (os 20% mais «ricos»); só as classes de rendimentos mais elevados terão tido cortes inferiores à média; as restantes, incluindo as classes médias e as duas de rendimentos mais baixos, têm cortes superiores ou mesmo muito superiores à média; até 2011 a austeridade está claramente enviesada para favorecer as classes de rendimentos mais elevados, em detrimento das de rendimentos médios e baixos que são mais penalizadas.

Tudo isso muda, pelo menos parcialmente, a partir de 2012: a redução de rendimentos nas classes de menores rendimentos continua a ser muito elevada, mas é menos intensa do que até 2011; todas a classes médias passam a ter cortes de rendimentos muito inferiores à média; a classe de rendimentos mais elevados passa a ter um corte que é quase duplo da média.

A escolha do período, com inclusão do ano de 2014, e o subtítulo, que situa o objeto de estudo como sendo as consequências sociais do ajustamento são opções que acabam por mistificar por outra ordem de razões: como sabemos 2014 já não é um ano de redução dos rendimentos pois os rendimentos reais aumentam, se olharmos para a média do rendimento; de facto os rendimentos já aumentaram em 2013, e aceleraram em 2014.

Assim, na vigência do ajustamento, os rendimentos primeiro diminuíram mas depois aumentaram. Por qualquer razão, não sei qual, os autores não consideram relevante esse facto.

A terminar, e não menos importante do que tudo o resto, importa recordar a evolução de Portugal registada pelo mais unânime dos índices de avaliação das desigualdades das populações, o índice de Gini, no qual, apesar do período de ajustamento e austeridade, acabou por revelar uma evolução positiva de 0,3 % para as desigualdades no nosso país, como o próprio estudo acaba por confessar na sua conclusão.
Seria pois útil, e até verdadeiro serviço público, que esta análise entre os tais dois períodos fosse feita para que se acabassem com as dúvidas sobre quando e quem foi mais prejudicado ou protegido pelas medidas de austeridade. O seu a seu dono.