Beatriz Dias Coelho, in ionline
Na sexta-feira a Estufa Fria de Lisboa abriu as portas para um evento solidário a favor de um projeto da comunidade cigana. Oportunidade para ver o valor de um povo e de uma cultura que continua entre as mais discriminadas na nossa sociedade
Cabelos, escovas, secadores, maquilhagem e roupa: é este o cenário que encontramos à chegada, a meio da tarde. Faltam poucas horas para o início do evento e aqui fazem-se os últimos preparativos para o momento principal da noite, o desfile da coleção Primavera-Verão 2018 da Romani Design, uma marca húngara que cria peças únicas inspiradas na cultura e tradição ciganas, feitas por mulheres ciganas.
“Associei-me a este evento porque pretende apoiar um projeto com objetivos semelhantes aos da Romani Design, como mostrar o valor e o prestígio do povo cigano, empoderar as mulheres ciganas e construir pontes entre diferentes culturas”, explica ao i Erika Varga, a criadora da Romani Design. Refere-se ao Centro Romi, um centro comunitário no Seixal para mulheres e crianças projetado por oito jovens mulheres ciganas no âmbito da iniciativa “Dare to Dream”, financiada pelo Programa Erasmus+Juventude em Ação e resultante do trabalho conjunto da REDE de Jovens Para a Igualdade e da Associação Pelo Desenvolvimento das Mulheres e Crianças Ciganas Portuguesas (AMUCIP). A abertura do centro está apenas dependente de uma pequena verba – e o valor reunido esta noite reverterá a favor do projeto.
“A minha marca nasceu em 2010. As roupas têm grande influência da tradição cigana e são feitas por mulheres ciganas, mas não são só para o povo cigano”, continua Erika, que esclarece que a ideia é que mulheres e homens de diferentes culturas vistam as suas criações, à venda para o mundo no site oficial. Como explica a estilista, a nova coleção – Heart – é pautada pela feminilidade, alegria de vida, liberdade, amor e esperança, e inspira-se nas feiras tradicionais, com carrosséis e outros divertimentos.
Segundo Erika, na Hungria, tal como em Portugal, a comunidade cigana continua a ser descriminada. E por isso a responsável não tem dúvidas de que eventos como este contribuem para a construção de uma maior tolerância.
A moda como ponte cultural
Tolerância é, precisamente, o que rege o ambiente do evento. Mulheres, homens e crianças de várias etnias e culturas, tanto na audiência como na passerelle, convivem e assistem à beleza da cultura cigana sob diversas manifestações – dança, música, moda e culinária.
Pela Estufa Fria passeiam-se caras mais e menos conhecidas. A apresentação está a cargo dos atores Fernanda Serrano e Pedro Barroso, que por estes dias desempenha o papel de um homem cigano numa novela portuguesa.
Um pouco depois da hora marcada, chega o momento principal da noite. Ao ritmo de música cigana em língua húngara, “modelos VIPs” – como as apresenta Fernanda Serrano – desfilam entre modelos voluntárias – louras, morenas, brancas, ciganas, africanas. Algumas das modelos ciganas pertencem ao grupo de mulheres que dirige o Centro Romi.
Na passerelle, Catarina Marcelino, Sílvia Vermelho, Eduarda Marques ou Noel Gouveia desfilam as novas criações da Romani Design. Cores vivas e sóbrias coexistem em tecidos fluidos, com motivos tradicionais da cultura cigana ao lado de elementos mais contemporâneos e ocidentais, como riscas ou bolas.
Motivo recorrente ao longo de toda a coleção é a rosa, muito presente em lenços tradicionais ciganos, e o coração – motivo central da coleção, segundo Erika –, forma que é dada aos bolos e guloseimas vendidas nas feiras tradicionais que inspiraram a coleção.
Depois do desfile, a celebração da cultura cigana termina com alguns petiscos tradicionais. E descobrimos semelhanças entre a cozinha portuguesa e a cozinha cigana: também o povo cigano come as típicas filhoses, mas dá-lhes forma retangular e acompanha-as com espetadas de fruta.
A independência das mulheres ciganas
Tal como a estilista Erika, as oito jovens do Centro Romi derrubaram barreias no seio da sua própria cultura e comunidade. Espera-se das mulheres ciganas que saiam cedo da escola para casar e constituir família e que ocupem a sua vida a cuidar da casa, dos filhos e do marido. Mas estas mulheres saíram de casa para desenvolverem projetos próprios – e conseguiram fazê-lo com o apoio da família e dos maridos.
Erika conta ao i que a sua comunidade se orgulha do seu trabalho. O marido, aliás, acompanhou-a até Lisboa para ajudar na logística do desfile.
Alzinda Carmelo, da direção da AMUCIP, é a mediadora que tem vindo a acompanhar, ao longo dos últimos três anos, as oito jovens mulheres ciganas criadoras do Centro Romi. E explica ao i o processo. “Tinham três dias de formação externa e eu assegurava os filhos delas”, algo que, como explica, é muito importante para as mulheres ciganas, que “para onde vão, levam os filhos”.
Na formação, estas mulheres aprendiam por exemplo a fazer um currículo ou a ir a uma entrevista de trabalho, “coisas muito básicas, mas que para elas eram uma novidade, porque são mulheres que saíram da escola há muitos anos”, diz Alzinda. Depois, a formação terminou, mas elas tinham um sonho – abrir o Centro Romi. E a AMUCIP uniu forças com a REDE.
Giovana tem 26 anos e é uma das jovens à frente do projeto. Casou aos 17 e tem um filho com sete anos. “A formação e a criação do Centro Romi foi uma experiência nova para todas nós”, diz. “A nossa vida era levar os filhos à escola, fazer almoço, arrumar a casa, fazer jantar, tratar do marido e pouco mais do que isso. Antes, só pegava num lápis e numa caneta para ajudar o meu filho com os trabalhos”.
Nem o marido, nem os pais, nem sogros se opuseram à participação de Giovana no projeto. O marido disse-lhe até que “seria bom” para ela espairecer, uma vez que estava sempre em casa.
“O Centro Romi é um bocadinho de cada uma de nós. Somos jovens, mas já estamos casadas há algum tempo, e por isso temos muita experiência a cozinhar por exemplo. Depois, nós ciganas gostamos muito de maquilhagem. E temos experiência com crianças também, por causa dos nossos filhos”. No Centro, vão pôr em prática tudo isso: haverá comidas rápidas, como bifanas, sandes e bolos, um espaço criança, onde os clientes do café podem deixar os filhos enquanto comem, e ainda um espaço dedicado à beleza, onde as mulheres poderão ir para fazerem unhas de gel ou serem maquilhadas. “Qualquer pessoa é bem-vinda lá”, diz.
Quer Alzinda quer Giovana destacam a importância do evento, tanto na divulgação do Centro Romi como na missão de mostrar que, tal como nas outras culturas, a cultura cigana tem coisas bonitas e a sua comunidade tem pessoas com valor e que querem trabalhar. “Não nos ponham a todos no mesmo saco”, pede Alzinda. Já Giovana, pede mais oportunidades. “Não nos dão oportunidades. Se não fosse a AMUCIP e a REDE, isto não era possível e nós não estávamos aqui”, lamenta. “Eu tenho muito orgulho em ser cigana. E nós não somos todos iguais”.