20.11.17

"Alguns andam a viver à custa do trabalho de muitos"

Barbara Baldaia, in TSF

Diz que "as pessoas não escolhem ser vítimas da pobreza". O padre Jardim Moreira, presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza, critica o poder político, os "poleiros" e os ricos que vivem para o "ter".

No domingo, o Papa almoça no Vaticano com 1.500 pessoas que vivem em situação de pobreza. A iniciativa insere-se no Dia Mundial dos Pobres, que foi instituído no ano passado pelo chefe da Igreja Católica. É o pretexto para a conversa com o padre Jardim Moreira, presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza começa com os motivos que levaram à criação deste Dia dos Pobres.
Entrevista a Jardim Moreira, presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza, conduzida por Barbara Baldaia

Eu não posso dizer que sou religioso no culto e lá fora espezinho o meu vizinho. O Papa veio-nos chamar a atenção que o cristão é aquele que ama a Deus, amando Deus nos outros. É para este voltar às origens fundamentais do cristianismo que é voltar à base humanista fundamental que o Papa nos chama a atenção com o Dia do Pobre. Eu gostaria mais que ele dissesse "pessoas em estado de pobreza".

Porquê?

A pobreza não é nenhuma virtude ou parte integrante da pessoa. A pessoa vale por si, a pobreza é um acidente que lhe é imposto e de que ela pode ser vítima numa sociedade ou num sistema que lhe impede de poder realizar a sua vida e as suas capacidades em liberdade e em plenitude. Portanto, penso que o Papa vem chamar a atenção de que os cristãos têm o dever, por coerência de fé, de cuidar do seu semelhante, particularmente daquele que é vítima do sistema em que vivemos, porque nós somos todos iguais em dignidade e não há prática religiosa verdadeira que não lute contra esta situação e não construa uma verdadeira família de irmãos a nível universal.

A pobreza é um reflexo do sistema?

É um reflexo do sistema que valoriza o ter, o possuir bens, em detrimento de possibilitar a felicidade de cada um dos outros. Porque só na medida em que cada um se transcende, em que deixa de pensar só em si próprio, para pensar nos outros e possibilitar aos outros felicidade, é que ele ganha também esta dimensão da felicidade e da comunhão. É que nós só somos felizes quando comungamos, partilhamos uns com os outros. Se não partilhamos, não somos felizes.

Ou seja, é um reflexo do sistema capitalista?

É mais complexo, porque nós não podemos viver sem dinheiro. O mal está quando o dinheiro domina as relações humanas e quando domina os governos e as políticas. Se o dinheiro for usado corretamente ao serviço da pessoa humana, temos um capitalismo correto. Se o capitalismo domina a pessoa, temos um capitalismo destruidor, em que a pessoa se torna dependente e apenas um instrumento do capital.

E que tipo de capitalismo é que temos na nossa sociedade?

Aquilo que dizem os entendidos - e estão todos de acordo - é que estamos num capitalismo neoliberal que é selvagem, que não olha a valores, que cria uma sociedade corrupta, dos que roubam desavergonhadamente, porque acham que são eternos, que têm um poder ilimitado. De algum modo, é a concretização da tentação humana de se equiparar ao criador omnipotente e único, esta de se endeusar já na terra.

O sistema acaba por anular a pessoa e valorizar o individualismo?

Evidentemente que o sistema valoriza o poder, o ter e o ter como forma de poder, para poder subjugar os outros e, quando os outros não lhe convêm, destrói-os, elimina-os.

Vamos vendo como isso se faz ainda hoje por aí, com a eliminação de grupos, etnias ou até daqueles que denunciam. Ainda bem há pouco tempo houve o caso daquela jornalista em Malta... Quando a pessoa se torna incómoda para o sistema, ela desaparece. Isto quer dizer que é um sistema que não respeita nem a verdade da pessoa nem a verdade sociológica e, portanto, temos um sistema opressivo e implantado na mentira e no engano das pessoas que prometem mundos e fundos e depois saem sempre defraudadas.

E o poder político alinha com esse sistema?

O poder político atualmente - não é novidade para ninguém - vive como longa manus, isto é, é uma forma extensiva desse poder que não tem rosto e executa as ordens que vêm desse grupo omnipotente e omnisciente que tudo pensa e tudo dirige segundo os seus intentos. Os governos são-lhe submissos.

Mas quem é esse grupo?

Aí está o segredo. É divino, é oculto, misterioso.

Mas são grupos reais..

São grupos reais que estão ligados ao grande poder económico mundial e às grandes empresas mundiais que dominam o grande capital.

Neste momento, vemos como estão bastante diluídas as assimetrias ideológicas mesmo entre EUA e Rússia, entre China e EUA, porque neste momento o que domina é o sistema capitalista neoliberal e esse está mais ou menos globalizado.

Ainda que se diga que a pobreza diminui no globo, muitos passaram a ter melhores condições de vida, mas não deixaram de ser pobres nem dependentes nem deixaram de ter a sua limitação para conquistarem a dignidade, a saúde e a felicidade.

Perguntava-lhe pelo poder político também porque ultimamente temos visto o PR próximo dos pobres. Recentemente, esteve junto de alguns sem-abrigo. Como é que vê este tipo de comportamentos? É um alerta para a sociedade? É marketing político? Como entende isto?

Tanto quanto sei, o PR confessa-se publicamente como cristão católico e penso que as suas atitudes são coerentes. Ele coloca sempre a pessoa humana em primeiro lugar nas suas atitudes e nas suas relações. A alguns convém dizer que é a questão dos afetos, mas eu acho que é muito mais que afetos porque é reconhecer a dignidade humana em toda a pessoa na circunstância em que ela vive.

Um dos primeiros gestos do seu mandato foi visitar as mulheres na cadeia de Tires e agora nos incêndios foi abraçar quem chorava os seus mortos, quem ficou sem nada e ele veio dizer-nos que na política portuguesa também é preciso que o ser humano seja o sujeito e o objeto de todas as políticas, que toda a vida política e económica e social se deve conjugar ao serviço da pessoa humana. Doutra forma, é desumanizante.

É importante que o PR tenha esse tipo de ações?

É evidente que é importante, porque ele com o seu modo de agir e de falar está a mostrar ao país que é necessário trabalhar para aqueles que representam, nomeadamente àqueles a quem o sistema exclui ou escraviza.

Sublinhou o facto de ele ser cristão, mas não é um exclusivo dos cristãos olhar para as pessoas com situações mais debilitadas...

Não é exclusivo, mas penso que, se o é, é bom que o manifeste e que o assuma. O poder político é para servir todas as pessoas. E nós temos muitas vezes o poder político invertido. Vão para o poleiro para cada um governar a sua vidinha e a dos seus amigos e isto é uma deturpação do poder na sociedade.

E é isso que tem acontecido em Portugal nos últimos governos?

É transversal por esse mundo ocidental e não só. Ainda agora vimos o que se está a passar em Angola, como é que o novo Presidente está a tirar a família dominante, porque é preciso servir a população e não apenas uma família.

Recentemente, durante o último governo, falou-se muito da questão dos novos pobres, das pessoas que eram da classe média e deixaram de ter dinheiro para comer. Como avalia essa situação? Melhorou? Piorou? Está igual?

Os novos pobres foram identificados, de modo geral com, a classe média e, com os novos pobres, quase desapareceu a classe média. Entraram numa vida bastante insegura e instável e bastante difícil.

Alguns recuperaram os empregos, podem ter recuperado um pouco o estatuto que tinham, outros emigraram e estão certamente a poder governar a sua vida doutra maneira, mas a maioria retrocedeu no seu estatuto económico e social e, portanto, essa gente que vem da classe média passa a ser considerada uns pobres com algum estatuto de educação e um estatuto social, mas que não tem o dinheiro que gostariam de ter para as suas vidas.

Tem havido alguma retoma económica. Acredita que essa questão está a inverter-se?

O que aconteceu é que mais ninguém foi espoliado, nem os seus vencimentos. A verdade é que as pessoas começaram a ter mais dinheiro no bolso e dessa forma puderam pagar algumas dívidas, sentirem-se mais auto-confiantes e ter um bocado mais de esperança de poderem sair da miséria vergonhosa em que estavam caído. Há uma aparência de uma esperança, mas se vamos falar à pessoa com mais intimidade, a pessoa não tem grandes margens nem de dinheiro nem de vida fácil. É um equilibrismo muito grande.

Há um estudo da OCDE de outubro que diz que as novas gerações vão viver pior por causa das situações de desemprego e dos baixos salários. Não é propriamente uma novidade, mas o que queria perguntar-lhe tem a ver com a questão do salário mínimo. O objetivo do Governo é chegar aos 600 euros em 2019. Parece-lhe suficiente este valor e o valor que temos atualmente, de 557 euros?

O que temos de pensar é em diminuir as desigualdades e, se a pessoa produz e não recebe o equivalente ao seu trabalho, continuamos a ter alguém que anda a viver à custa do trabalho de muitos. E este é que é o problema.

As últimas notícias dizem que o pequeno grupo dos milionários aumentou e aumentaram também os pobres. Quer dizer, o dinheiro concentra-se em poucos e a maioria não tem depois acesso aos bens que são necessários neste contexto duma sociedade dita mais ou menos evoluída, porque o que isso representa é a grande dificuldade em reconhecer a dignidade de todos e que todos deviam ter um mínimo, em vez dos ricos esbanjarem. Porque depois vemos os Ferraris, os palacetes, as casas, os barcos, tudo aquilo em que gastam dinheiro de uma forma às vezes desmesurada e depois não há dinheiro que chegue para atender àqueles que não têm os mínimos necessários.

Esta mentalidade que assenta num desequilíbrio e numa falta de equidade é que se torna grave no país.

E o que é que é possível fazer para ultrapassar isso? E de quem é a responsabilidade? Os ricos têm culpa de ser ricos? Devem fazer alguma coisa para mudar a situação?

Todos sabemos que a pobreza tem razões multidimensionais, não há uma única faceta que seja responsável ou capaz de alterar o sistema.

Uma coisa que é preciso mudar é a educação, não de conhecimentos, mas no conceito de reconhecer os valores, os direitos e as obrigações de cada um. Quando aí chegarmos, então reconhecemos que somos todos muito mais próximos uns dos outros.

O segundo é o sistema capitalista que continua a seduzir as pessoas pelas aparências, pelo ter, que diz que possuindo são felizes. A verdade é que a pessoa é feliz quando é pessoa, quando é capaz de se relacionar de igual para igual e manter relações de afectos, de quem quer o bem do outro e tem o feedback.

Quem tem muito não é pessoa, nessa dimensão?

O rico não é, na Bíblia, reprovado por ser rico. Só é reprovado quando não partilha, quando pensa que a felicidade está no ter.

Temos que estar mais atentos à questão ecológica e da defesa do ambiente para diminuir as desigualdades?

A questão ecológica gera pobreza. A ecologia não é independente, porque retira o essencial, a saúde, produtos alimentares que vão gerar todo um circuito de mal estar, cancros, etc. Tudo isto está dependente desta questão ecológica, em que as pessoas passam a ser vitimas do sistema criado para lucro de alguns. As causas que tornam o ser humano vítima são várias. Mas têm a ver com uma promessa de felicidade falsa, dizendo que, se tiver dinheiro, se tiver bens, se dominar os outros, já está bem. Nós sabemos que somos felizes quando nos colocamos ao serviço uns dos outros gratuitamente.

Enquanto presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza, nos contactos que vai fazendo com os diversos partidos políticos, o que tem sentido? qual é a sua esperança de que de facto haja algum entendimento para mudar coisas essenciais para combater o fenómeno da pobreza em Portugal?

A experiência que tenho é que são todos muito simpáticos na abordagem do tema, mas cada um vê segundo os seus óculos e as lentes que tem. Veem segundo a sua ideologia e aí nenhum está de acordo com os outros. Por isso, o bem comum aos mais pobres não é comum às ideologias e está a ser bastante difícil encontrar um consenso dos partidos na luta contra esta injustiça coletiva que vivem os pobres. Devíamos chamar-lhes duma forma correta "os injustiçados" porque ninguém nasce pobre, nascemos todos iguais. Uns são vítimas, aqui e ali, do sistema e são injustiçados. Se uma criança vai para a escola faminta, ela não vai poder render na aprendizagem como vai um bem nutrido. Logo à partida, a pessoa começa a ficar com limitações só por causa das oportunidades que lhe são ou não concedidas desde que nasceu.

Como ouve aquele argumento de que as pessoas têm de acordo com o seu esforço e o seu mérito?

Essa é uma boa maneira de justificar o seu egoísmo. Para culpabilizar aqueles que não têm acesso à vida igual aos outros, responsabilizam-nos da sua escravatura, dizem que são escravos porque querem, são vítimas porque querem. Bom, não é assim! Isso é uma atitude incorreta e injusta para com muita gente, porque de facto não é isso que as pessoas querem. Uma parte significativa dos pobres são trabalhadores. Trabalham, mas o ordenado não chega. Não há emprego suficiente, vivem de vencimentos muito fracos e muito incapazes e, portanto, a culpa não é de quem trabalha, é de quem paga que não dá o dinheiro suficiente.

Acha que as entidades patronais, duma maneira geral, podiam pagar melhor do que pagam, em termos da média do país?

Creio que, sabendo que a grande maioria da economia nacional vive das PME e grande parte delas são empresas familiares, se calhar aí as coisas não são fáceis. O grande problema está nas grandes empresas que dominam essas todas e cujo interesse está voltado não para o bem público, mas para o bem pessoal, desde os paraísos fiscais, onde o lucro e os impostos deixam de estar ao serviço do bem comum para estar ao serviço pessoal. Há aqui uma maneira de estar na vida que não é justa nem se torna promotora do bem comum.

Há pouco usou a palavra "escravos". Somos escravos ou somos livres?

Nascemos livres, mas depois somos escravos das condições que nos impõem e que nos limitam e que temos de viver nesta dependência de quem tem o poder na mão e quem pode dispor até das nossas possibilidades de desenvolvimento de toda a nossa capacidade e, portanto, muitas vezes não é dado a todos as possibilidades e as oportunidades de cada um poder viver como gostaria de viver e desenvolver-se como gostaria de se desenvolver.