12.9.22

“Quem sai da prisão sem ninguém… sabe que não vai ser feliz.” Assim nasceu O Companheiro

Andreia Friaças (texto) e Nuno Alexandre(fotografia), in Público online

A prisão é um lugar “escuro”, “tremendo”, onde os pensamentos “torturam”. Mas, “cá fora”, continua a não ser fácil. Para quem sai da prisão sozinho, O Companheiro é a primeira casa — e é aqui que se reaprende a estar no mundo. “Agora sou uma pessoa que nunca pensei que fosse. Aprendi a ser eu mesmo.”

Passar de “lá dentro” para “cá fora” é uma longa viagem, começa por dizer José Pinheiro. Há dois anos que deixou de ser tratado por um número, um dos muitos que ocupam as celas da prisão da Carregueira, em Sintra. Desde então, reaprendeu a viver com os barulhos da cidade, a azáfama dos transportes públicos e até a caminhar pela calçada de Lisboa. “O chão na cadeia é todo liso, para não se arrancar pedras. Cá fora parecia que já nem sabia andar”, diz José, de 46 anos. “Para quem esteve preso volta tudo a ser novo”, acrescenta.

Ainda assim, o principal esforço continua a ser acompanhar o ritmo do mundo. “Nos cinco anos em que estive preso, a minha vida parou. Senti que perdi esses anos, que o mundo continuava a existir e eu não fazia ideia do que acontecia”, afirma José, recordando o dia em que finalmente saiu da prisão e, do outro lado, tinha um amigo à sua espera. “Senti-me feliz, mas ao mesmo tempo apreensivo. Pensava em como ia conseguir andar em frente porque o mundo… tinha mudado.”

A primeira paragem foi O Companheiro, a associação que ajudou José a reaprender a estar no mundo “cá fora”. Há 35 anos que esta associação abriu portas para colmatar a falta de acompanhamento que é dado a antigos presidiários. “Queremos ser uma casa, um recomeço para estas pessoas”, começa por dizer a psicóloga da instituição, Rita Ponce. “Mostramos que antes de serem ex-reclusos, são pessoas. Muitas vezes, eles perdem essa ideia. O nosso objectivo é devolver-lhes a identidade.”

Quem passa pela conhecida Estrada de Benfica facilmente encontra esta associação. Existem várias casas, capazes de albergar 15 pessoas, uma cantina social, uma horta e mesmo um ginásio. “Sinto-me bem aqui”, diz José, que conheceu a associação numa actividade da prisão. “Na altura, guardei logo o panfleto”, graceja. “Precisava de um sítio para viver. Estava a ser excluído por toda a gente, sabia que quando saísse da prisão não podia ficar com a minha família”, justifica. “Agora, vivo aqui. E não me sinto sozinho.”

A tortura dos pensamentos

Bartolomeu Henriques, de 35 anos, saiu d’O Companheiro há cerca de um ano. Deixou de aqui dormir todas as noites, ou de tratar do seu espaço na horta, onde cuidava do milho vindo de Angola, a sua terra natal. Hoje em dia continua a visitar a associação para ir às consultas com a psicóloga. Mas, até chegar ao O Companheiro, houve um longo caminho a ser feito.

Natural de Luanda, Bartolomeu mudou-se para Portugal em 2008, para receber cuidados médicos, depois de um acidente lhe ter causado problemas na visão. Chegou a Lisboa sozinho, saltou entre várias residências sociais, mas não ficou em nenhuma durante muito tempo. “Era um jovem revoltado”, explica Bartolomeu, que teve um problema de alcoolismo aos 14 anos, agravando-se depois da morte do pai.

“Eu bebia por tudo. Por estar com problemas, com depressão, por estar feliz. Não pensava que era um problema na minha vida porque só vivia para aquele dia, não pensava no dia seguinte”, partilha. “Nessa altura, tinha comportamentos de revolta e não sabia porquê; só sabia que era uma pessoa perigosa. Com o consumo soltava o que estava aqui dentro. Talvez essa revolta fosse de nunca ter sentido amor, nem da minha família”, confessa Bartolomeu, que, entre as poucas memórias felizes na infância, destaca os meses em que esteve internado no hospital e brincava com outras crianças, correndo pelos corredores “como se fosse a rua”.

Já em adulto foi empurrado de associação em associação, expulso por episódios de violência, até que foi preso em 2013. Esteve um mês detido enquanto aguardava julgamento. “A prisão é um local muito escuro”, recorda. “É uma coisa tremenda. Se me dessem uma arma… matava-me logo. Sentia uma dor que não sabia descrever. Estava a torturar-me com os meus pensamentos. Só me perguntava: ‘O que será da minha vida amanhã?...’”

31 de Dezembro de 2015. Foi no último dia do ano que José entrou na prisão pela primeira vez, com uma sentença de sete anos. Os primeiros meses foram os “piores”: estava numa “ala complicada”, em que só podia ir ao pátio duas horas por dia. “Estávamos sempre fechados na cela, não conseguia dormir nem comer”, afirma. Depois de vários pedidos, foi transferido para “outra ala”, onde podia trabalhar dentro da cadeia. “Precisava de ter a cabeça ocupada para não ficar doido”, justifica.

Olhando para trás, garante que o “pior” eram as noites. “Era difícil conviver ali”, diz José, que chegou a partilhar cela com 11 homens. Todas as noites eram iguais: os guardas percorriam as celas, com um ferro na mão, e batiam em todas as grades para garantir que nenhuma estava aberta. Quando terminavam a ronda, José, desesperado por ocupar a cabeça mesmo nos momentos de descanso, começava a treinar na cela. Usava bidões de água nos cabos das vassouras e levantava as camas. Passando as 21h, sabia que tinha de parar. “Era a hora sagrada: a hora das novelas.”
“Mostrar que somos diferentes”

A associação O Companheiro compõe-se de vários gabinetes. Existe um departamento de integração laboral, o gabinete jurídico, de psicologia e intervenção, de direitos e deveres fundamentais e ainda uma escola social — onde são desenvolvidos programas para treinar competências, como o controlo da impulsividade ou agressividade.

A prisão em números

Em 2021, existiam 10.774 pessoas nas cadeias portuguesas – e cerca de 93% são homens.

Na Europa, Portugal sobressai como um dos países que registam maiores taxas de suicídio nas cadeias. O valor mediano no conjunto dos quase 50 países europeus foi de 5,7 suicídios por 10 mil reclusos, em 2020, quando em Portugal essa taxa ultrapassou os 18 casos por 10 mil pessoas.

Ao mesmo tempo, a falta de condições nas prisões tem sido um tema em análise. Este ano, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos condenou Portugal por falta de condições de higiene, roedores e insectos nas celas e escassez de comida no estabelecimento prisional de Coimbra.

Além destes gabinetes, existe também uma equipa de futebol, que é treinada por Margarida Ferreira. “Ter uma mulher a dar indicações foi algo novo para eles. As pessoas não estão habituadas. Um jogador disse-me directamente: ‘Tenho dificuldade em receber ordens de uma mulher’”, recorda. Mas, aqui, o futebol serve precisamente para “formar melhores pessoas”. “Treinamos a conduta desportiva e isso ajuda na integração. O Companheiro tem o rótulo de estar associado a reclusos. Eu digo aos jogadores: ‘Nós temos de quebrar esse preconceito. Temos de mostrar que somos diferentes.’”

Gerson Fernandes é um dos jogadores mais antigos; tinha 18 anos quando aqui chegou, pela mão do primo, que tinha saído da prisão e era apoiado pela associação. Apaixonado pelo futebol, entrou logo na equipa. “O futebol faz-me estar num mundo à parte”, explica o jovem, agora com 26 anos.

Depois de O Companheiro, começou a fazer parte do projecto de futebol de rua da associação Cais e foi seleccionado, em 2018, para representar Portugal no Mundial de futebol de rua, no México. “Éramos tratados como celebridades”, graceja. “Mas o melhor é a amizade. Um dos meus melhores amigos é da equipa. E no início não gostava nada dele.”
“Foi aí que a minha vida começou”

Ao fim de cinco anos, José saiu da prisão em liberdade condicional. A partir desse momento, nasceram outros medos. “Pensava no que seria o olhar das pessoas. Pensava que seria sempre considerado um criminoso, que isso me iria perseguir para sempre”, desabafa. “Quem sai da prisão já sabe que vai ter uma vida difícil. E quem sai da prisão sem ninguém… sabe que não vai ser feliz”, corrobora Bartolomeu, que, depois de um mês preso, está há sete anos em liberdade condicional.

No caso de José, foi através do trabalho que mostrou o seu valor. “A minha vida sempre foi a trabalhar”, reforça José, recordando os tempos de infância em que saía da escola e não podia ir brincar com as outras crianças. Tinha de ir dormir, para acordar de noite e trabalhar na padaria com o pai. Depois de o pão estar feito, as madrugadas eram passadas a fazer a distribuição pelas vilas. Finalmente, quando o sol nascia, palmilhava até à escola, mesmo que chegasse lá “a dormir”.

Depois de conhecer O Companheiro, também não tardou até ter os dias preenchidos. Todas as semanas, a associação partilha os anúncios de emprego e ajuda a construir um currículo, a criar um email e a contactar as empresas. Em poucos meses, José arranjou emprego como jardineiro, durante a semana, e ao fim-de-semana pintava casas.

Já para Bartolomeu, sair da prisão foi mais difícil. Recorda-se de abandonar a cela “a tremer” e de deitar ao lixo o saco que lhe tinham dado com todos os seus pertences. Sem nenhum amparo e sem sítio para ir, voltou a beber. “Estava no fundo do poço e cavei ainda mais fundo”, partilha. Passados alguns meses, começou a viver na rua, juntamente com outros jovens. “Era ex-presidiário, sem-abrigo e só sentia pena de mim mesmo.”

A sua vida acabou por mudar quando aceitou ajuda e decidiu ir para uma clínica de reabilitação. “Foi aí que a minha vida começou”, confessa. “Todos os problemas de que eu fugia — a agressividade, o álcool —, tive de os enfrentar ali”, partilha Bartolomeu, que, na adolescência, cometeu tentativas de suicídio.

Quando saiu da clínica de reabilitação, ao fim de um ano, mudou-se finalmente para O Companheiro e começou a ser acompanhado por uma psicóloga. “Agora sou uma pessoa que nunca pensei que fosse. Com a psicóloga, aprendi a ser eu mesmo. Antes pensava que era uma pessoa triste, agressiva e sem sonhos. Mas depois percebi que tudo isto era uma forma de não mostrar que sofria”, desabafa.

Se antigamente o álcool não o deixava “pensar” nem “fazer planos”, agora Bartolomeu aprendeu a “ter gostos”. Primeiro, amealhou dinheiro para comprar um mp3 e agora anda sempre com os seus “phones” para todo o lado. “Gosto de ficar a olhar para o vazio e ouvir música. Fico a sorrir… a sorrir com os meus pensamentos.”

Há dois anos que conseguiu emprego como jardineiro, na Junta de Freguesia de Benfica, mas nem sempre é fácil. “Já ouvi no trabalho ‘tu és só mais um d’O Companheiro que vem fazer porcaria’”, lamenta. Já no caso de José, surgiram outros problemas. “Mandavam-me embora quando queriam, e não me queriam pagar..”, explica.

“Quando sabem que somos ex-presidiários e precisamos do trabalho, querem explorar-nos”, alerta Bartolomeu, que há cerca de um ano também encontrou dificuldades em arrendar um quarto. “Quando sabem… começam com as desculpas para não arrendar”, acrescenta. “É difícil safarmo-nos sozinhos. O Companheiro ajuda a perceber quais são os nossos direitos. Isso faz-me sentir mais forte”, conclui José.
A liberdade e o futuro

Seja qual for o cenário, o preconceito “nunca deixa de existir”, garante Bartolomeu. “E sente-se cada vez mais”, completa Gerson Fernandes. “A mim, já não me afecta. Aprendi a gerir os problemas. Todos os dias aprendo comigo mesmo a superá-los”, conclui Bartolomeu.

Também o presidente da associação, José Brites, garante que ainda há muito trabalho a ser feito para “combater o estigma”. “Muitas vezes, os comportamentos desviantes estão associados à falta de oportunidades. Acreditamos que ao trabalharmos várias competências as pessoas melhoram bastante e são inseridas na sociedade de forma mais humana”, diz o presidente da associação que no ano passado serviu cerca de 36 mil refeições e foi a casa de mais de 50 pessoas.

Ainda assim, este ano há motivos para celebrar. Nos próximos meses, O Companheiro finalmente muda de morada, abandonando o terreno camarário onde sempre estiveram. “Tínhamos pavilhões prefabricados. Agora vamos finalmente ter uma casa diferente”, diz José Brites.

Talvez José Pinheiro já não assista a esta mudança. Nos últimos meses, abriu a sua empresa de prestação de serviços de jardinagem e remodelações. “As pessoas gostam do meu trabalho”, diz José, que já está à procura de uma nova casa. “No futuro, gostava de ter uma família”, confessa. “Queria ter um filho, mas já não é para a minha idade...”

Já Bartolomeu junta outras conquistas. Nos últimos tempos, inscreveu-se no curso de Técnico de Informática e Gestão de Redes, aproveita o tempo livre para passear e até descobriu prazer em ver filmes, embora tenha ido ao cinema pela primeira vez aos 25 anos.

Este ano, termina os sete anos de liberdade condicional. Já pode pensar na vida para lá de Lisboa. “Gosto de me imaginar a viajar em vários cenários e a ser feliz sem consumo”, conta. Para onde quer que vá, é certo que os seus “phones” o acompanharão. E, na verdade, dessa paixão pela música guarda ainda outro desejo mais profundo. “Há anos que digo que tenho um grande sonho”, sorri Bartolomeu. “Gostava de um dia ir a um concerto da Pink!”