30.9.22

“Há algo cómico quando nos preocupamos com o bife que um pobre come”

Bárbara Wong, in Público on-line

ldar Shafir, professor de ciências comportamentais e de políticas públicas, que se sentou na Casa Branca e foi ouvido por Barack Obama, vai estar no congresso da Ordem dos Psicólogos, em Aveiro, para falar de pobreza e escassez.

Como podem os psicólogos ajudar no combate à pobreza? A pergunta é feita pela Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) que começa esta quarta-feira o seu 5.º congresso, em Aveiro. O tema é “Tempo da Psicologia” e uma das 500 comunicações será a de Eldar Shafir, professor da Universidade de Princeton, EUA, sobre pobreza e escassez mental. Recentemente, a OPP lançou a campanha .Final à Pobreza (que se lê: “ponto final à pobreza"), onde reflecte sobre o papel dos psicólogos no combate à pobreza, uma vez que esta pode ser causa ou consequência de dificuldades e problemas de saúde psicológica.

Eldar Shafir, investigador na área das ciências comportamentais e de políticas públicas, que se sentou na Casa Branca e foi ouvido por Barack Obama, publicou A Tirania da Escassez: Porque é que tão pouco significa tanto!, em co-autoria com Sendhil Mullainathan, da Universidade de Chicago, onde defendem que quanto menos se tem, mais catastrófica pode ser a vida da pessoa. Recorrendo a inúmeros estudos, os autores concluem que o que está em falta na vida de uma pessoa ganha uma importância de tal maneira desproporcionada que tudo o resto deixa de ser relevante, acabando por o indivíduo afunilar a perspectiva, deixando de conseguir planear, educar os filhos ou concentrar-se no trabalho.

Os estudos apontam que as capacidades cognitivas são de tal modo impactadas que isso se reflecte nos testes de QI. É uma pescadinha de rabo na boca: os pobres ficam mais pobres e geram filhos pobres. Para a revista Foreign Policy, em 2013, os dois investigadores norte-americanos foram incluídos na lista dos 100 principais pensadores globais. Não é a primeira vez que Eldar Shafir vem a Portugal e está a aprender português na universidade, conta via Zoom. Com tanta formação e bons professores, seria um desperdício não aproveitar, argumenta. Sobre o seu trabalho como consultor durante a administração Obama, defende que é mais fácil fazer diferença a nível local do que nacional.

A Tirania da Escassez: Porque é que tão pouco significa tanto!

Autores: Eldar Shafir e Sendhil Mullainathan
Editor: Lua de Papel 320 págs., 11,62€


Escreveu A Tirania da Escassez há quase uma década. O mundo mudou, por exemplo, estamos a viver a guerra na Ucrânia, que nos afecta directamente, bem como as alterações climáticas. A teoria continua a fazer sentido?
Bem, não fizemos estudos recentemente, mas em geral, todos temos problemas com os filhos, os companheiros, a saúde, o Putin, as questões ambientais... Mas o que descobrimos é que, em momentos de escassez intensa, se o problema for demasiado grande, toma conta da nossa mente. Sim, a guerra é um problema, mas consigo estar mais de uma hora sem pensar no Putin; agora, se não conseguir pagar a renda ou comprar comida para os meus filhos, esse problema fica na minha mente e incomoda-me em permanência.

Porquê?
Porque não conseguimos parar de pensar. Um dos problemas com a questão ambiental não parecer tão urgente, é que conseguimos deixar para depois. Mas se estivermos em risco de ser despejados de casa, não conseguimos deixar para depois.

No livro usa a metáfora da mala de viagem. Quando temos uma mala maior, a vida é mais fácil porque não estamos obrigados a fazer escolhas. Não é um desafio mais interessante, quando a mala é pequena, em que somos obrigados a seleccionar?
Há muitos estudos que mostram que quem tem a mala pequena não se sai mal. Por exemplo, quando se pede, à porta do supermercado para as pessoas revelarem os gastos que fizeram, os mais pobres sabem exactamente o que pagaram por cada artigo, enquanto os ricos não fazem ideia. Portanto, sim, quem tem a mala pequena sabe gerir melhor, o único problema é que enquanto se está a fazer essa gestão, não se pensa noutras questões. Paradoxalmente, enquanto se estão a gerir recursos escassos, podemos esquecer-nos de pagar o estacionamento e seremos penalizados por isso, o que tornará a mala ainda mais apertada.

A escassez acaba por influenciar fortemente a forma como gerimos a nossa vida e tomamos decisões?
Quando os recursos são escassos — podemos falar de falta de tempo, de dinheiro ou da solidão —, a evidência mostra que quando a nossa mente está focada nas questões que nos preocupam, tudo o resto é negligenciado. As nossas capacidades são limitadas, não conseguimos fazer muitas coisas ao mesmo tempo, e quando nos focamos nas nossas insuficiências, as outras coisas não importam. No entanto, podem gerar problemas para os quais não estamos despertos porque não estamos focados.

No livro referem que a pobreza, de tempo ou de dinheiro, pode fazer de nós piores pais. Porquê?
Fazemos referência a um estudo feito com controladores aéreos e percebemos que quando o dia de trabalho lhes corre bem são melhores pais e companheiros. Portanto, quando estamos a gerir a escassez, quando estamos assoberbados, somos menos atenciosos, menos pacientes, menos consistentes.

Isso acontece a ricos e pobres.
O que é interessante é que a escassez não tem a ver só com pobreza económica, mas com o facto de pormos as pessoas em contextos de pobreza. Nestes estudos, mostramos que pessoas que eram muito capazes tornaram-se menos competentes quando a escassez se impõe nas suas vidas. Existe um longo debate nas ciências sociais: as pessoas são menos capazes por serem pobres ou são pobres porque são menos capazes? Muita gente, sobretudo no espectro mais à direita, tende a defender que a razão por que se é pobre é porque se é irresponsável. E os nossos estudos demonstram que a pessoa se torna irresponsável quando é pobre porque começa a fazer malabarismos e a gerir mal as suas opções.

Por vezes, temos o preconceito que as pessoas pobres fazem más opções. Por exemplo, porquê comer um bife de vaca se um de frango é mais barato?
Antes de mais, existe falta de empatia e de compreensão para com o outro. Por exemplo, na fila do supermercado, uma criança pobre pede à mãe para comprar um chocolate e ela anui. Alguém na fila vai pensar que é uma má decisão. Mas, quantas vezes disse aquela mãe que não ao seu filho? Umas 275 vezes. Queremos que aquela criança nunca experimente um chocolate? O que é correcto: comer uma vez, duas vezes por ano? Portanto, a pergunta parece ser: como se deve comportar o pobre para nos deixar satisfeitos? É-lhe permitido comer bife quando? Se para nós, o mais correcto é os mais pobres viverem uma vida muito infeliz então isso não é justo.

Mas, tal como os ricos, também tomam decisões erradas?
Claro que erram e fazem más escolhas. Tal como os ricos, só que a estes ninguém os apanha nem os julga porque é-lhes permitido errar.

Estes fazem más escolhas como viagens ao espaço?
Sim, ir ao espaço é exótico, são rapazes a brincar com brinquedos de luxo. Mas fazemos escolhas estúpidas a toda a hora e são-nos permitidas, ao passo que o mesmo não acontece com a mãe que compra o chocolate. Há algo cómico quando nos preocupamos com o bife que um pobre come, mas não com quem compra umas sapatilhas de 6000 dólares. Envergonha-nos a nós e não aos pobres.

Voltando atrás, à pergunta que as ciências sociais colocam: os que sofrem de escassez são menos capazes por serem pobres ou são pobres porque são menos capazes?
Todos os dados mostram que se dermos condições às pessoas para fazerem melhor, elas fazem-no. Há uma imagem muito forte nos EUA que é a “rainha da assistência social”, é aquela pessoa que sabe tirar partido dos subsídios e benefícios do Estado, sentada em casa, a ver televisão e a rir-se da sociedade. É uma imagem que não corresponde à verdade porque todos os estudos mostram que essas situações são raras. Se dermos um trabalho digno e bem pago, a maioria das pessoas prefere trabalhar a ficar em casa a ver maus programas televisivos. Trata-se de um estereótipo muitíssimo enganador.

Sobre a escassez, que mensagem transmitir aos políticos e aos empresários, estes deviam saber mais sobre psicologia comportamental?
Sem dúvida. Muita investigação na área da psicologia comportamental observa o modo como as pessoas funcionam e, frequentemente não é como pensamos. Se não conhecermos o outro e o que o motiva, as políticas não vão ser adequadas. E há uma lista infinita de más políticas...

O que é uma boa política?
É uma baseada em assunções que sejam verdadeiras sobre as pessoas — o que querem? O que as preocupa? Há um estudo sobre pessoas que tinham de ir a tribunal, em Nova Iorque, por causa de infracções menores, como multas por andar de bicicleta no passeio ou atravessar com sinal vermelho, por exemplo. A maioria falhava na comparência em tribunal e acabava por ser presa. As pessoas esqueciam-se de ir a tribunal por terem vidas complicadas. O estudo consistia em enviar lembretes às pessoas para irem a tribunal e isso levou a uma diminuição drástica das condenações porque as pessoas compareciam. Portanto, a não ser que o legislador seja mesmo mal-intencionado, há pequenas medidas que podem facilitar a vida dos cidadãos.

É possível erradicar a pobreza?
É possível reduzi-la enormemente. Há governos, incluindo o de Portugal, que são mais sensíveis que o dos EUA. O ano passado, por causa da covid, foi introduzido um subsídio para famílias com crianças pequenas e a pobreza infantil diminuiu de um dia para o outro. Tão fácil. Mas, um ano depois, esse benefício foi suspenso. Transferir os impostos sobre os mais ricos para os pobres é outra medida que solucionaria muitos problemas.

E as pessoas seriam mais saudáveis e mais felizes?
Sem dúvida. Eu estou a falar a partir de um país onde não existe assistência médica gratuita e há estudos que mostram que a desigualdade torna as pessoas, — todas e não apenas as mais pobres —, menos felizes. Portanto, é importante para toda a sociedade que sejam introduzidas políticas que promovam a igualdade.

A escassez pode levar a problemas de saúde mental?
Sem dúvida, se a pessoa está sob pressão e em escassez, isso leva a que esteja sob um enorme stress. A juntar a isso, normalmente, estas pessoas vivem em piores condições, em sítios com mais barulho, mais poluição, mais crime, é tudo mau. A pobreza não é justa.