9.9.22

O bom pobre de família

Luísa Semedo, in Público on-line

Se Isabel Jonet, apesar de tão próxima do terreno tem uma visão tão desfasada do que é ser pobre, imagine-se quem só vê pessoas pobres em documentários e ficções.

A expressão bonus pater familias originária do Direito romano significa agir como um “bom pai de família”, com razoabilidade, com diligência, com o mesmo zelo com que se cuida dos seus próprios interesses e é, ainda hoje, utilizada em códigos civis de vários países.

Em França, a expressão foi retirada dos textos legais em 2014 através da mudança da legislação sobre a igualdade entres as mulheres e os homens, tendo sido substituída pela palavra razoabilidade. O “bom pai de família” é uma figura abstrata, um tipo ideal de cidadão cujos atos se adequam a uma norma extremamente subjetiva, tal como “o bom pobre de família”.

Apesar de não fazer parte do código civil “o bom pobre de família” é uma figura que obedece de certa forma ao mesmo tipo de critérios. O bom pobre de família também tem de ser razoável, tem de administrar com precaução os bens de que dispõem. E não é fácil. Utilizemos como exemplo uma das medidas do pacote Famílias Primeiro do governo de António Costa, o muito comentado cheque de 125 euros. Como ser um bom pobre de família com tal quantia? Questão espinhosa.

A presidente do Banco Alimentar contra a Fome Isabel Jonet leva este assunto muito a sério e sugere, em declarações à agência Lusa, que “quando se atribui uma ajuda deste tipo, única, é importante fazer uma pedagogia e explicar às pessoas que não podem ir gastar estas verbas todas de uma só vez” e adiciona ainda que em Portugal “há quase um incentivo às pessoas quererem mais apoios sociais e menos responsabilidade na própria vida”. Isabel Jonet dá-nos aqui algumas pistas úteis para caracterizar o que deve ser um bom pobre de família. Deve ser uma pessoa responsável, evidentemente sem dinheiro, mas que poupa naquilo que não tem e sobretudo não o gasta de uma só vez. E para isso precisa de ser formada ao que Isabel Jonet chama de racionalidade económica ou, em linguagem de pobre de família, de magia económica.

Esperemos que as formações aconselhadas por Jonet sejam gratuitas ou então que se possam pagar em “leves prestações” com o dinheiro que se poupará na redução do consumo diário de bifes do seu mundo imaginário. O exemplo da presidente do Banco Alimentar é perfeito para se poder compreender a diferença entre a teoria e a prática, entre o imaginário e a realidade. Se Isabel Jonet, apesar de tão próxima do terreno tem uma visão tão desfasada do que é ser pobre, imagine-se quem está longe, quem só vê pessoas pobres em documentários e ficções ou a quilómetros de distância na sua própria casa a passar a ferro e a fazer a comidinha de que os Senhores gostam. Ai a Maria lá de casa é uma joinha!

Em França, há uns meses também foi aplicada uma medida similar com um cheque de 100 euros, e muito do que se ouve e lê em Portugal neste momento, também se ouviu ou leu nos meios de comunicação e redes sociais franceses. O pobre de família é sempre um suspeito, um culpado, vai sempre gastar o dinheiro mal gasto, mais vale dar-lhe um cabaz de compras, assim assegura-se que não vai esbanjar em telemóveis e em televisões 4K. O pobre de família precisa de ser contido, controlado, fiscalizado, supervisionado. O pobre de família é uma criança, muito diferente do rico que é responsável e adulto desde que nasceu. O pobre de família precisa de muitos documentos e de contar mil vezes a sua história à assistência social do momento. O pobre de família precisa de atestar que é digno de confiança e que merece o dinheiro tal como um mendigo necessita de tocar um pífaro ou cantar um Stand by Me nem que seja desafinado senão não merece esmola. É falta de empreendedorismo, ficar-se pelo “tenho fome” ou o “tem uma moedinha?”. Talvez estas pessoas também precisem de pedagogia para compreenderem que a sua fome não é igual à dos outros se não animarem a malta.

Cada vez que sou solicitada num supermercado para uma recolha alimentar para além de produtos que estejam na lista que nos é entregue à entrada dou sempre chocolates. Lembro-me de um amigo que ficou chocado com o gesto. Então em vez de gastares esse dinheiro em mais esparguete, arroz ou conservas, compras doces para os pobres? Sim. Porque sei o que é ser pobre. Sei o que é abrir um caridoso pacote de alimentos e da alegria de miúda quando de repente há um chocolate ou um daqueles ursinhos com mel. Lembro-me dessa impressão de normalidade da vida que é ter um prazer, um prazer extra, um prazer proibido ou mal visto. O bom pobre de família não pode ter prazeres, precisa de sofrer senão não entrará no céu e não se poderá ficar a rir do rico que foi parvo por ter preferido o paraíso terrestre.

É verdade que por vezes o dinheiro não é muito e quando se recebe o salário (quando este existe) já gasto na dívida da mercearia faz-se a loucura de ir ao restaurante porque se tem fome de relaxamento, de “deixar-se ir” como explica de forma perfeita Patrick Declerck no seu livro Os Náufragos - Com os vagabundos de Paris (2001). O filósofo e antropólogo decidiu fazer uma experiência de imersão vivendo vários meses na rua e descreve um sentimento, para ele, até então inédito: “Por vezes é a raiva de comer que surge de repente. Demasiadas conservas, demasiado pão. Demasiados impossíveis. Demasiados restaurantes que não nos podemos oferecer. Todos estes desejos reprimidos. Lemos os menus. Fugimos. (…) Temos fome. Não a fome no sentido estrito da palavra, não. Não aquela fome fisiológica, terrível, lancinante, do indivíduo que morre de fome, não. Mas fome de luxo. Fome de relaxamento. Fome de deixar-se ir. Fome de parêntesis. Fome de esquecimento e de paz. Fome de saciedade. Gordurosa, bem-aventurada e animal. (..) Comer algo por infração. Comer com um manguito. Até ao silêncio profundo como a morte.”

Já recebi cabazes alimentares, mas também já dei no âmbito de um dos meus trabalhos. A perceção da caridade não é a mesma quando se dá e quando se recebe. Seria longo explicar num texto curto todas as suas facetas, mas partilho duas. A extrema vergonha de quem recebe, de pessoas que quase não ousam olhar-nos nos olhos e que nos falam de temas completamente diferentes para nos distrair do momento que vivem como doloroso e o sentimento extremo de falhanço, apesar do ato ser necessário, quando se “faz caridade”, a consciência aguda de que a pobreza é um problema estrutural e que aquele momento num dos países mais ricos do mundo não deveria existir.

É verdade que é importante “fazer uma pedagogia” como diz Isabel Jonet, mas não é “o bom pobre de família”, nem pessoa pobre alguma que dela precisa.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico