21.9.18

Tribunal invoca "sedução mútua" e "mediana ilicitude" em caso de jovem violada quando inconsciente

Fernanda Câncio, in DN

Relação do Porto mantém pena suspensa para dois funcionários de discoteca de Gaia condenados por terem tido "cópula" com jovem de 26 anos quando "incapaz de resistir". E fala em "danos físicos" sem "especial gravidade".

"A culpa dos arguidos [embora nesta sede a culpa já não seja chamada ao caso] situa-se na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica, ambiente de sedução mútua, ocasionalidade (não premeditação), na prática dos factos. A ilicitude não é elevada. Não há danos físicos [ou são diminutos] nem violência [o abuso da inconsciência faz parte do tipo]."

As considerações pertencem a um acórdão da Relação do Porto, datado de junho e assinado pelos juízes Maria Dolores da Silva e Sousa (relatora) e Manuel Soares, dizendo respeito a um caso ocorrido em novembro de 2016, quando uma jovem de 26 anos - a quem se dará o nome de Maria -- foi, de acordo com o dado como provado, submetida, enquanto "incapaz de resistência" por estar muito embriagada, a relações sexuais "de cópula completa" por dois funcionários da discoteca Vice Versa, em Vila Nova de Gaia, na casa de banho da mesma e quando o estabelecimento se encontrava já encerrado, não havendo mais ninguém nele além dos arguidos e de Maria.
"A culpa dos arguidos [embora nesta sede a culpa já não seja chamada ao caso] situa-se na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica, ambiente de sedução mútua, ocasionalidade (não premeditação), na prática dos factos. A ilicitude não é elevada. Não há danos físicos [ou são diminutos] nem violência [o abuso da inconsciência faz parte do tipo]."

Os homens, de 25 e 39 anos à data dos factos, respetivamente barman e porteiro/relações públicas da discoteca, Marcos e Paulo de primeiro nome, foram condenados a quatro anos e meio de prisão em acórdão de fevereiro do juiz 2 do Juízo Criminal Central de Nova de Gaia, que suspendeu a aplicação da pena, suspensão confirmada pela Relação. De acordo com esta última decisão - não foi possível consultar a da primeira instância, já que estas por norma não são disponibilizadas na net - a acusação feita pelo MP (que recorreu por não concordar com a suspensão da pena) não foi toda considerada procedente.

Os arguidos, que estiveram de fevereiro a junho de 2017 em prisão preventiva e depois em prisão domiciliária com pulseira eletrónica até ao julgamento, foram apenas condenados "pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência", descrito no artigo 165º do Código Penal e cujo enquadramento penal é de dois a dez anos de prisão.
"Ela estava toda desmaiada"
Não recorreram da condenação, apesar de, segundo o recurso do MP, não admitirem ter cometido o crime nem manifestarem "qualquer arrependimento pela prática dos factos": "Apenas reconheceram ter mantido relações sexuais com a ofendida, negando o estado de inconsciência em que a mesma se encontrava. (...) Apenas se limitam a mostrar arrependimento em função das consequências que para si próprios os factos praticados podem acarretar; ou seja um arrependimento focado e centrado nas suas pessoas."
Considerando que "ambos os arguidos desprezaram totalmente os mais elementares valores morais e jurídicos de respeito devido pela liberdade e autodeterminação sexual da ofendida, ao se aproveitarem do seu estado de inconsciência para com ela manterem relações sexuais de cópula", o MP frisa no recurso que a seguir ao crime o barman Marcos não mostrava dúvidas sobre o "estado de inconsciência da ofendida", referindo-o "em telefonemas intercetados na escuta ao seu telemóvel dizendo "(...) ela estava toda fodida (...)" e "(...) Não. Ela estava toda desmaiada no quarto de banho (...).""
O barman não mostrava dúvidas sobre o "estado de inconsciência da ofendida", referindo-o "em telefonemas intercetados na escuta ao seu telemóvel dizendo: "Ela estava toda fodida" e "Ela estava toda desmaiada no quarto de banho."
Aparentemente, a falta de arrependimento não foi valorizada pelo tribunal de recurso. Tão-pouco terá sido tida em conta a possibilidade de os arguidos serem condenados pela forma agravada do crime - a que prevê um aumento de um terço nos limites mínimo e máximo quando, nos termos do artigo 177º do CP, é "cometido conjuntamente por duas ou mais pessoas" -- e que, aparentemente, o tribunal inferior rechaçou argumentando "não se ter demonstrado o planeamento de uma decisão conjunta ou a sua execução com diferentes papéis atribuídos a cada um mas, em vez, duas resoluções autónomas e distintas."

Igualmente, o facto de pelo menos Paulo, o porteiro, não ter usado preservativo quando submeteu Maria a "cópula completa, ejaculando" - foram encontrado resíduos do seu sémen no exame forense que foi feito quer a Maria quer às suas roupas - não mereceu qualquer censura penal ou sequer menção na decisão, apesar de ser uma conduta que coloca a vítima em perigo acrescido.

"Os arguidos não demonstraram qualquer arrependimento pela prática dos factos. Apenas reconheceram ter mantido relações sexuais com a ofendida, negando o estado de inconsciência em que a mesma se encontrava. (...) Apenas se limitam a mostrar arrependimento em função das consequências que para si próprios os factos praticados podem acarretar."

Quanto a serem ambos funcionários do estabelecimento, facto que o MP frisa no seu recurso impor-lhes "um comportamento mais cuidadoso senão mesmo de proteção" dos clientes, "pelo que redobrado era o seu dever de não serem eles a abusar dessas situações [de excesso alcoólico], especialmente com comportamentos sexuais altamente reprováveis e dolosos" também não terá sido considerado relevante pelas duas instâncias - como, de resto, a evidência de estes terem mantido a vítima num local fechado, que controlavam, durante várias horas.

Diz a Relação: "Os factos demonstram que os arguidos estão perfeitamente integrados, profissional, familiar e socialmente e dão-nos conta de, pelo menos, grande constrangimento dos arguidos perante a situação que criaram. Os arguidos não têm qualquer percurso criminal. A leitura dos factos espelha personalidades com escassíssimo pendor para a reincidência."

Tribunais só viram atenuantes
"Todo o caso é apreciado no pré-entendimento de que eles não vão para a prisão. Tudo o que pode ser usado para atenuante é invocado, tudo o que devia ser agravante não é", comenta Inês Ferreira Leite, penalista, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e membro da direção da associação feminista Capazes.

"A falha começa pelo MP, que não fez uma acusação com todos os elementos que deveria ter usado. Deveria ter sido mencionado o não uso de preservativo e sido pedido que os arguidos fossem inscritos na lista de agressores sexuais e lhes fossem aplicadas as penas acessórias para pessoas que cometam crimes sexuais. Não deviam poder voltar a trabalhar em funções em que fiquem responsáveis por outras pessoas, nomeadamente em bares e discotecas. Isso não se consegue evitar só com o regime de prova [acompanhamento pelo Instituto de Reinserção Social com um plano específico] que o tribunal impôs no período da pena suspensa."
Não achando que "a pena seja necessariamente injusta no caso" ou que o acórdão seja "especialmente chocante", a jurista crê que deveria ter sido contemplada a agravação "por terem cometido o crime em conjunto, ter havido conjugação de esforços. Aliás o tribunal considera que não houve premeditação - e concordo que não houve -- mas pode considerar-se a possibilidade de concertação prévia. Porque é que o porteiro leva a amiga a casa e não as duas? Porque deixa a vítima sozinha com o barman?"
"Há sempre tolerância em relação a este tipo de arguidos, os acusados de crimes sexuais contra mulheres. São apresentados como boas pessoas, como não criminosos, que numa dada situação deram largas aos seus instintos sexuais."

Além disso, opina Ferreira Leite, "o que salta à vista no acórdão é a forma menorizante como se despacharam os efeitos do crime na vítima." Para além de só serem mencionadas as sequelas físicas, quando "é de conhecimento obrigatório que todos estes crimes têm um impacto psicológico e emocional muito grande", o facto de o acórdão mencionar "um ambiente de sedução mútua" surge-lhe incompreensível: "Não encontro na descrição quaisquer factos objetivos que demonstrem a sedução mútua." Acresce, sublinha, que "ou há ou não há consentimento para o ato sexual e se não há consentimento há crime, o que nada tem a ver com a existência ou não de um clima de sedução prévia. Sendo certo que ainda por cima o crime foi cometido pelos dois arguidos. Será que o tribunal está a dizer que a vítima seduziu os dois?"
E conclui: "Há sempre tolerância em relação a este tipo de arguidos, os acusados de crimes sexuais contra mulheres. São apresentados como boas pessoas, como não criminosos, que numa dada situação deram largas aos seus instintos sexuais. E se nem discordo da suspensão da pena é preciso ter em conta que temos em Portugal pessoas condenadas a prisão efetiva por crimes contra a propriedade ou por corrupção, sendo como estes arguidos primários [ou seja, sem condenações anteriores]."

"Este caso é o nosso La Manada"
"É o nosso La Manada", diz uma magistrada que pede para não ser identificada, referindo-se ao processo relativo à violação de uma jovem espanhola de 18 anos, também em 2016 e também quando embriagada, por cinco homens, nas festas de San Fermin, em Pamplona, e cuja sentença encheu as ruas de Espanha de protestos, por se ter considerado que não tinha sido usada violência na consumação do crime. "O que mais revolta é que quando estão em causa crimes contra mulheres o sinal que os tribunais dão é sempre este, de desculpabilização do comportamento dos agressores. O que era preciso para terem pena efetiva? Que já tivessem violado ou roubado antes?"
Como a penalista citada, considera que deveria ter sido valorizada a comissão em conjunto e o não uso de preservativo. Mas ao contrário dela crê que "a medida da pena demonstra que o crime foi desvalorizado. Há um sinal de impunidade para a comunidade. Uma mulher inconsciente foi violada duas vezes! Que humilhação para ela constatar que ficam com pena suspensa."

"O que mais revolta é que quando estão em causa crimes contra mulheres o sinal que os tribunais dão é sempre este, de desculpabilização do comportamento dos agressores. O que era preciso para terem pena efetiva? Que já tivessem violado ou roubado antes?"
A indignação sobe de tom: "E o acórdão refere que ela esteve a dançar na pista? Mas que importância tem isso? Que relevo, que relação? E de onde vem a "sedução mútua"? Esta mulher tinha vomitado e estava na casa de banho mal disposta. Provou-se que estava incapaz de resistir quando a violaram. Até se podia ter despido na pista, caramba. Está a tentar-se que recaia na vítima uma parte da responsabilidade. E que é isto da "baixa ilicitude"? O que seria alta ilicitude? Às vezes parece que a argumentação jurídica permite que a gente se perca e não veja a gravidade das coisas. Estamos a escudar-nos no argumento jurídico para branquear os factos."
Os factos, então. Voltemos atrás, à noite de sábado 26 de novembro. Maria, de quem pouco se sabe a partir do acórdão, tinha-se deslocado com uma amiga ao Vice Versa, que ambas frequentavam há alguns meses e de onde conheciam os arguidos. Pelas 3.30, havendo já no bar, lê-se na factualidade provada, "poucos clientes e aproximando-se a hora do seu encerramento - 4 horas da madrugada -, o arguido [barman] começou a servir à [vítima] vários "shots" - pelo menos três -, de bebidas alcoólicas (...) dizendo que era oferta, sendo certo que a ofendida já havia consumido várias bebidas também alcoólicas."

"De onde vem a "sedução mútua"? Esta mulher tinha vomitado e estava na casa de banho mal disposta. Estava incapaz de resistir quando a violaram. Está a tentar-se que recaia na vítima uma parte da responsabilidade."
Pouco depois, já após as quatro da manhã, a amiga de Maria mostrou-se mal disposta, sentando-se num sofá na zona Vip, acompanhada por Paulo. Maria juntou-se-lhes, acompanhada por Marcos, e começou também a sentir-se nauseada, sendo levada por Marcos ao exterior do bar (supõe-se que para apanhar ar). Perto das cinco da manhã, como não se sentisse melhor, Maria foi levada por Marcos à casa de banho feminina e aí sentou-se no chão, junto à sanita, e vomitou. Paulo foi também à casa de banho nessa altura e "aí verificou sinais de embriaguez" em Maria.