Rita Siza em Bruxelas, in Público on-line
O presidente da Comissão Europeia proferiu o seu último discurso do Estado da União. O executivo de Jean-Claude Juncker tem menos de um ano para tentar arrumar dossiês complexos e firmar o seu legado.
A campanha para as eleições europeias de Maio de 2019 parece ainda distante, mas não tardará para que os cálculos políticos passem a dominar a acção dos legisladores e decisores de Bruxelas. O executivo europeu só muda em Novembro do próximo ano, mas a equipa liderada por Jean-Claude Juncker, que proferiu esta quarta-feira o seu último discurso do Estado da União, já não dispõe de muito tempo para lidar com os dossiês mais complexos, sensíveis e polémicos que marcaram o seu mandato, e para definir o seu legado.
“Brexit”
Desde a sua fundação, a União Europeia esteve sempre a adicionar e nunca a subtrair: a Comissão Juncker ficará por isso na história por ter presidido à primeira exclusão de sempre de um membro da União, com o abandono do Reino Unido. Como num casamento que inesperadamente chega ao fim, a decisão dos britânicos foi um choque que veio revelar os problemas de comunicação e as dificuldades de relacionamento entre as capitais nacionais e Bruxelas.
Mas se o “Brexit” teve alguma virtude, foi a de unificar os 27 Estados membros em torno da defesa e protecção do seu mercado único e das quatro liberdades (de circulação de pessoas, bens, serviços e capitais) que lhe estão associadas — esse é o princípio que sustenta a postura europeia nas negociações com Londres.
Esta quarta-feira o presidente da Comissão lembrou que, apesar de estar resignado, o lado continental ainda lamenta o divórcio, e por isso está interessado em fechar a “mais ambiciosa parceria” possível com o Reino Unido depois do “Brexit”. Mas isso não quer dizer que a UE aceite ultrapassar “linhas vermelhas”, particularmente aquelas que dizem respeito à preservação dos termos do Acordo de Sexta-Feira Santa e à inexistência de uma fronteira física entre as duas Irlandas.
Zona Euro
A grave crise das dividas soberanas chegou a ameaçar a integridade da união económica e monetária, mas Bruxelas e Frankfurt acabaram por proteger e segurar a moeda única com uma politica de estímulo que conseguiu evitar o “Grexit”. Apagado o espectro da dissolução da zona euro, as instituições lançaram-se à difícil missão de reformar a união económica e monetária para não voltarem a ser surpreendidas por défices incontroláveis tanto nas contas públicas dos países como nos balanços das instituições bancárias.
Mas esse esforço está a revelar as profundas diferenças que existem entre os diferentes, genericamente agrupados em dois blocos: os promotores da disciplina e frugalidade orçamental e os que defendem a criação de uma capacidade orçamental própria da zona euro, que permita aos países ultrapassar os constrangimentos impostos pelo pacto de estabilidade e investir em reformas estruturais.
Nas reuniões do Europgrupo, continua a não haver consenso sobre as regras da união bancária, e as fracturas quanto à adopção de um orçamento da zona euro parecem inultrapassáveis.
Migrações
Outra questão explosiva e que divide profundamente os 28 Estados membros tem a ver com a resposta europeia à crise migratória que atingiu o continente em 2015, ano em que a chegada de mais de um milhão de pessoas em fuga das guerras no Médio Oriente, ou da pobreza extrema em África, testou os limites do sistema de asilo europeu, mostrou a fragilidade das fronteiras externas da UE e expôs a falta de solidariedade entre os Estados membros.
O tema das migrações deu força aos movimentos populistas que em França e na Alemanha, na Holanda, Áustria ou Hungria, em Itália e mais recentemente na Suécia, desafiam a ordem política estabelecida. O seu discurso desafia também a realidade: a diminuição significativa tanto do número de desembarques e migrantes como dos pedidos de protecção e requerimentos de asilo demonstra que a Europa já não enfrenta uma crise de refugiados.
A Comissão reconhece que há trabalho a fazer e no seu discurso do Estado da União Juncker avançou algumas propostas concretas, como por exemplo o robustecimento da Guarda Costeira e de Fronteiras Europeia com mais 10 mil efectivos até 2020. Os países não terão problemas em subscrever esse reforço, mas dificilmente aceitarão uma outra ideia da Comissão para a conversão deste contingente numa força de polícia europeia. Juncker também defendeu a adopção de um verdadeiro sistema de asilo, que reveja as regras de Dublin e promova uma redistribuição solidária entre todos os Estados membros dos refugiados na Europa — outra proposta para a qual não existe consenso político.
E desviando a atenção da questão migratória das entradas clandestinas para busca legítima de uma vida melhor na Europa, Juncker afirmou-se como um defensor da imigração. “Renovo o meu apelo a abertura de canais legais para o acesso à Europa. Precisamos de trabalhadores qualificados”, disse.
Governos iliberais
O problema manifesta-se sobretudo ao nível do Conselho Europeu, embora seja notório o “desconforto” da equipa executiva de Juncker nas suas interacções com os líderes responsáveis pela. A deriva autoritária e o desvio dos valores democráticos em que assenta a UE levou à consideração, pela primeira vez desde tratado de Lisboa, da aplicação do artigo 7º como forma de sancionar os governos prevaricadores — para a Comissão Juncker, a abertura desses processos não é tabu, como também não deve ser a introdução de um elemento de condicionalidade ao respeito pelo Estado de Direito na distribuição dos fundos comunitários aos Estados membros.
Desde que tomou posse, Juncker tem usado o seu púlpito para denunciar os partidos de extrema-direita e os movimentos extremistas e criticar os líderes que recorrem a uma retórica xenófoba e nacionalista para “envenenar” a opinião pública. Resta saber se os eleitores estão mais sintonizados com o seu discurso, ou pelo contrário, se estão dispostos a seguir o apelo dos populistas.
Alargamento
A equipa de Jean-Claude Juncker não tem pretensões de fechar este dossiê, mas quer deixar o processo suficientemente encaminhado para que a entrada na UE dos seis países dos Balcãs que solicitaram a adesão (Sérvia, Montenegro, Macedónia, Albânia, Bósnia Herzegovina e Kosovo) se torne uma inevitabilidade. A atitude agressiva da Rússia, após a anexação da Crimeia e a interferência militar na Ucrânia, obrigou a UE a olhar com mais atenção para a região dos Balcãs, numa tentativa de travar a capacidade da influência política do regime de Moscovo e também a expansão dos interesses económicos e comerciais da China.
Com muitos governos nacionais (com destaque para a França) a deitar água fria sobre as pretensões dos Balcãs, e com os líderes regionais a ressuscitarem antigas dissensões sectárias com discussões sobre a remarcação de fronteiras, o desafio da Comissão é manter a perspectiva do alargamento como uma prioridade política. “A Europa pode exportar estabilidade”, frisou Juncker.
Segurança
Um dos legados de Juncker é o lançamento da chamada PESCO, ou Cooperação Estruturada Permanente para a Segurança e Defesa, um projecto de vertente essencialmente militar mas que procura também ser um instrumento da UE em termos de política externa. Menos de um ano depois do seu lançamento, Bruxelas pode declarar o sucesso dessa iniciativa, no início vista com relutância e desconfiança. “Não vamos militarizar a União Europeia. O que queremos é tornar-nos mais autónomos e capazes de exercer as nossas responsabilidades”, explicou Juncker esta quarta-feira, depois de enunciar como desígnio o reforço do Fundo Europeu de Defesa para que a Pesco se torne “totalmente operacional”. Juncker nem precisou de invocar o frisson provocado pelo Presidente dos EUA, Donald Trump, na cimeira da NATO de Julho, para ver o seu argumento reconhecido.
Comércio e relações exteriores
Tem sido na condução da política comercial, e principalmente na resposta à instabilidade geopolítica resultante da do Presidente russo, Vladimir Putin, e da eleição de Donald Trump para a Casa Branca, que a Comissão Europeia melhor tem demonstrado a força e união da UE. No caso do comércio, a Comissão reagiu com rapidez à, acelerando as negociações em curso com outros grandes blocos comerciais (na Ásia, na Austrália e na América Latina) aproveitando o vazio deixado pela retirada dos EUA dos acordos internacionais de comércio. A Comissão também tem conseguido enfrentar as investidas da Casa Branca e responder à imposição de barreiras alfandegárias e revisão de taxas aduaneiras, evitando envolver-se numa guerra comercial.